O dia
começa com memórias do dia anterior. Correria. Trabalho. Tudo feito pra ontem.
Mas ontem foi um dia atípico. Senti os nervos à flor da pele, senti o coração
palpitando, senti minhas mãos suadas e os olhos marejados.
Ainda era
um compromisso do trabalho (ou era ócio do ofício). Era Humano. Na Santa Casa,
frente a ala onde crianças e jovens moram lá. É isso! Eles moram no hospital.
Alguns há quase 20 anos. Dentre as plaquinhas que mostravam seus nomes, muito
mistério. Mistério que a cada passo ia se desconstruindo. Histórias difíceis de crer.
L, um
menino torcedor do Santos, estava acompanhado de um médico que fazia companhia
voluntariamente. Na cama, uma bola entre seus pés. Qual seria o seu desejo? Sua
mãe passa lá de vez em quando e avisa que vai viajar com seus irmãos. L pede
para ir embora, mas nunca terá oportunidade de conhecer sua casa. “Sua casa é a
Santa Casa”, diz a mãe.
T, uma
menina de 9 anos, fica me olhando fixamente, não fala. Sorri. Na cabeceira de
sua cama muitos bichinhos de pelúcia, detalhes na cor de rosa. Em sua cabeça um
laço de fita bonito de se ver. Sua família diz que não a quer em casa. “Ninguém
vai ter tempo pra ela”.
J e R
são bebês. Desde o nascimento não conhecem a luz do dia do lado de fora da
janela. Os dias correm como a noite, estão abandonados pelas famílias. Uma mãe
perdeu a guarda de seu filho, sofre com distúrbios psicológicos. A outra não
quer esse “compromisso”.
M mora
lá há 9 anos também, como T, mas sua mãe mora lá junto com ela, numa poltrona.
Essa mãe vive lá há 22 anos, pois antes vivia com o seu primeiro filho,
falecido na Santa Casa com a mesma patologia. Mas por quê pensar que a história se
repete quando se tem esperança de tudo ser diferente? A mãe relata que aguarda
uma decisão judicial que permitirá levar sua filha pra casa com os devidos
cuidados que necessita. “Se ela morrer no dia seguinte, poderá ter passado uma
noite em seu quarto de princesa.”. A história não pode se repetir!
Nos
corredores de outro andar tão maltratado pelo tempo está D, uma menininha que
no dia anterior completara 6 aninhos. Seu olhinho direito tem uma enorme mancha
roxa. Ela corre pelos corredores daquele hospital com a mesma liberdade de
estar num bosque cheio de flores. Presenciou seus pais usarem drogas durante
uma noite toda. No amanhecer do dia seu pai a pega no colo e sai correndo. Sua
mãe sai atrás. Ele se joga no trilho do metrô com D. Ela sofre um traumatismo e
ele morre de overdose. A mãe perde a guarda, afinal, colocou a vida de sua
filha em risco de morte. O tempo passa e é possível que após a alta ela seja
direcionada a um abrigo. E quem irá adotar? Uma menina negra. Um menina que aos
6 anos já sofreu tanto na vida. Uma menina que não teve a chance de conhecer o
amor. Uma vida que o tempo vai levando.
Eu
simplesmente não sei quantas imagens passam pela minha cabeça. O que pensar
diante daquelas vidas? É algo muito misterioso. É algo que eu não posso julgar.
Mas também não posso aceitar. É a natureza? Fico anestesiada e o meu olhar se
perde.
Não
queria perder o horário do nosso contato atemporal dentro do tempo poderoso que
iria moldar a história tão delicada do nosso encontro. De repente, nem percebi se existiam ruas. Estava perdida em 460 anos de história daquele lugar.
Minha
avó pairou minha cabeça. Foram 4 meses morando num ambiente semelhante àquele.
Eu identifiquei sua dor e um filme se passou diante dos meus olhos. Uma vida
cheia de frescor e de potência que de repente se empareda na simples e
essencial falta de sentido da vida humana.
O
absurdo da existência veio de novo sussurrar o meu ouvido. Sons e imagens inapagáveis.
Felizmente tenho conseguido lidar com algumas dores. Essas experiências doloridas que me levam a querer
enfrentar o mundo hostil e seguir em frente, do modo mais singelo possível, mas
seguir em frente sem falsas esperanças, mas seguir em frente. Desculpem essa
digressão para falar de mim.
Tais
experiências ajudam-me num exercício de autoconhecimento. Fazendo a ponte do eu
ao mundo. Ao ver tamanho sofrendo ali, surge esse sofrimento que só a escrita
pode aliviar minimamente. Surge a necessidade também daquele abraço que eu só
vou receber no final do dia. O abraço que torna tudo mais leve apesar da
tristeza que se passava naquele espaço. Me emociono ao lembrar dos olhares. Hoje
o dia requer poesia pra me curar depois de sair daquele útero cheio de imagens
fortes. Hoje a vida adquire um outro significado para mim.