terça-feira, 4 de novembro de 2014

A Síndrome de Ulisses, de Santiago Gamboa (algumas impressões de leitura)

O mundo fica pequeno quando não se tem casa e todos os países são hostis (...) Pensei, sou um pobre desgraçado e ninguém se importaria se eu cortasse os pulsos. E isso me deu força. Quando alguém é tão pouca coisa para os outros tende a se cuidar.

Então, no meio daquele grupo, fui acometido por uma intensa e opressiva sensação de orfandade, como se em algum ponto tivesse me extraviado do caminho e agora me encontrasse numa órbita distante, algo como o Planeta dos Macacos, só que com poloneses e romenos.

            "A Síndrome de Ulisses", de Santiago Gamboa tem como protagonista um jovem colombiano, Esteban, que vai para Paris com o sonho de se tornar escritor, mas acaba "nos cantos sombrios em que os imigrantes, na maioria ilegais, insistem em cultivar seus sonhos enquanto lutam pela sobrevivência".
            O jovem que trabalha em dois empregos, ao invés de viver na famosa "cidade das luzes", luta pela sobrevivência num ambiente pleno de escuridão. Em certos momentos declara "medo de não poder suportar a vida que escolhera e ter de voltar a Bogotá, derrotado". Em todo caso, Esteban ainda pode ser considerado privilegiado, pois para ele ainda existe a possibilidade de voltar à pátria. A situação inversa também é apresentada no livro, quando um colega do trabalho relata não haver mais nem essa possibilidade.
Sou coreano, mas no sentido mais triste do termo, ou seja, “coreano do norte” (...) Fugi porque queria fazer com a minha vida o que me desse vontade (...) Depois casei com Min Lin (...) e tive uma filha. A menina morreu aos sete anos. Em vez de leite a mãe só podia lhe dar um mingau de fubá, o que ao final de um ano a deixou cega, por causa da avitaminose. O governo do pai de Kim Il Sung nos dava cinco quilos de arroz por mês, mas isso não era suficiente para crescer. Perdemos nossa filha, e minha esposa, Min Lin, se recusou a viver. Entrou em depressão e tentou suicidar-se. Engoliu uma bolsa de vidro moído e ficou no hospital por mais de quatro meses. Depois foi presa, porque na Coréia do Norte o suicídio é proibido (...) Foi então que decidi fugir do país (...) Eu a abandonara. A sobrevivência nos transforma em pessoas duras, sem coração.
            Neste fragmento é possível notar a ideia clara da "Síndrome de Ulisses". Sabemos que tal síndrome é um transtorno mental que acomete a maioria dos imigrantes ilegais, desencadeando na sensação de perda por ter abandonado a sua terra natal. O nome da síndrome vem do herói mítico Ulisses, que perdido durante muitos anos se via impossibilitado de retornar à Ítaca.
As coisas difíceis que deve ter vivido, sua auto-estima lá no chão, a sensação de estar indefeso e o medo, tudo isso deve tê-lo levado ao estresse crônico e à depressão. Tem uma doença muito relacionada com esses sintomas, disse o médico, mas não tinha nome. Ainda não havia sido batizada como síndrome do imigrante ou síndrome de Ulisses.
            Esteban vive num lugar pequeno e após desistir do curso na universidade e iniciar seu trabalho num restaurante chinês, conhece aqueles que depois se ocupam de boa parte da narrativa, são esses os imigrantes ilegais que vivem numa Paris marginal. É interessante notar que Esteban vai para Paris, uma metrópole das letras, e lá encontra incapacidade de vivenciar a experiência criativa como escritor.
(...) mas enfim, disse a mim mesmo, minha vida, por escolha própria, tinha agora mais a ver com todos eles do que com minhas lembranças de Bogotá, e era justamente isso o que tinha diante de mim, nem mais nem menos (...)
            Vivendo nessa Paris cheia de frieza e hostilidade, a relação com os nativos é muito pouca. Existe uma tendência muito grande que faz com que os grupos de "semelhantes" acabem se aproximando. Nas poucas vezes em que se relaciona-se com os franceses o imigrante acaba numa fuga dos problemas por meio do vício. No romance de Gamboa observamos muito profundamente a relação com a sexualidade e com o mundo feminino. Walter Benjamin em "Despertar do Sexo" faz uma descrição que se assemelha muito com a primeira cena a respeito da sexualidade no livro de Gamboa, ele diz: "numa daquelas ruas, em que mais tarde perambulei sem descanso durante a noite (...), quando foi chegado o momento, o despertar do sexo em circunstâncias das mais singulares"
Agora que minha vida sexual havia se enriquecido, nada me atraía mais do que acrescentar outra marca na minha arma, entre outras coisas porque já começava a sentir aquela curiosidade dos imigrantes em relação às mulheres francesas.
            A questão das mulheres é um ponto bastante interessante na narrativa, afinal, essa temática perpassa a história de outros imigrantes, como Nestor, que é colombiano e Jung, coreano. Num dado momento do livro encontramos a seguinte frase:
A poesia e o exílio são velhos companheiros; o exílio traz com ele a tristeza do que se perdeu, o que já é em si um sentimento lírico; o exílio forçado recorre à lírica para ser denunciado; o exílio tira a lírica dos seus lugares habituais, o amor ou a gesta pátria, e lhe dá uma nova temperatura, o aproxima da realidade do mundo (...) o exílio trabalha um material poético relativamente novo, e que, claro, no seu caso, como no de tantos, esta lírica do exílio estava ligada a uma ideia do mundo, a uma visão política da história e das relações entre os seres humanos (...)
            Aqui, parece-nos que existe uma questão que coloca o imigrante num posicionamento a respeito do que ele teria sido e não do que ele é; a questão do exílio, na qual resta lutar pela sobrevivência. A Síndrome de Ulisses retrata a situação dos imigrantes que sentem o exílio e vivem a frustração de não alcançar o que almejavam.
            O fato de Esteban ter pretensão em tornar-se escritor é bastante importante. É necessário criar uma realidade já que não é possível apresentar a realidade tal como ela é. A questão da representação é apresentada nessa "literatura do exílio" e traz aspectos relacionados sobre a "vida do autor" e o que ele descreve sobre esse "sujeito da literatura". Existe uma certa semelhança entre o personagem e Gamboa, ambos estão distante de sua pátria.
            Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, nos faz pensar as culturas nacionais como uma fonte de significados, focos de identificação e um sistema de representação. No entanto, sabemos que o eu se constitui em correspondência a um outro. Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, diz: “ver a si mesmo metamorfoseado diante de si e agir agora como se tivesse entrado em outro corpo, em outra pessoa”. Em nossa leitura fica claro que não é possível criar algo homogêneo, uma cultura homogênea. Talvez essa impossibilidade de se transformar num "semelhante" seja a dor mais intensa do exilado, que encontra-se fora de sua pátria e também do seu próprio eu.

            Recomendo fortemente a leitura!