terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Íris – Uma despedida, de Gudrun Mebs


"Ah!, o eterno é o sempre.
Não tem nós de nascimentos
ou embaraços de mortes.
E o pensamento, este
é terreno demais para
decifrar intenso mistério"

(Bartolomeu Campos de Queirós, em Escrituras)

          Íris - uma despedida é, sem dúvida, um livro muito comovente e capaz de provocar muitas reflexões em seus leitores. A narradora da história é a irmã mais nova de Íris que tenta elaborar os acontecimentos numa narrativa ingênua e cheia de sentimentos. A pequena garotinha descreve o adoecimento de sua irmã que abala toda a família.

          Como uma criança pode entender a doença de uma irmã querida de forma tão repentina? Principalmente uma doença como o câncer? São esses os temas difíceis abordados na narrativa: o sentido da existência, a doença terminal e a importância dos vínculos nas relações humanas. 

          Não é por acaso que Eine Geschichte vom Sterben, título original, tornou-se um marco na literatura infantil alemã. Repleto de sensibilidade e profundidade faço um convite à leitura. Também é importante dizer que além da narrativa delicada de todo o percurso de Íris, as ilustrações de Beatriz Martín Vidal são de imensa representatividade nesse fascinante livro de tema complexo.


 (Ilustradora: Beatriz Martín Vidal / Tradutor: Daniel Bonomo



sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A linguagem do desenho: uma história de poucas palavras repleta de significados


          Nick Wadley estudou pintura e História da Arte, foi chefe do departamento de História da Arte na Chelsea School of Art, em Londres. Como historiador de arte, escreveu sobre  pintura e desenho do século XIX. Contribui com artigos para catálogos, revistas literárias e publicou uma série de livros, dentre eles Man + Doctor. Esse é um livro de desenhos produzidos entre 2004 e 2010, grande parte deles foi produzido na cama de um hospital em Londres. Muitos dos desenhos nos trazem a sensação de que o artista busca "evitar" o tratamento médico, aceitar a manipulação do próprio corpo e compreender a relação estabelecida no ambiente hospitalar. É através da atribuição de sentidos que podemos notar como o artista pôde se manter numa espécie de equilíbrio, longe da solidão, encarando os medos e as incertezas. 
            Grande parte dos desenhos demonstram impaciência e muito insegurança. O primeiro desenho não possui descrição, ele fala por si só.

           O paciente encontra-se numa sala de espera e, pela porta, os médicos observam o senhor de olhos atentos e mãos cruzadas, o corpo que quer se fechar. Ao lado, uma mesinha e mais nada, a solidão que o acompanha. O segundo desenho, "consultation", reproduz o consultório do médico. Nota-se uma relação assimétrica, de um lado o doutor de postura ereta, braços cruzados demonstrando firmeza, na parede muitos diplomas - como que se reafirmasse o papel de "detentor de saber". Por outro lado, o paciente continua com as mãos cruzadas, curvado, sentado, com olhos de dúvida e preocupação, olhando para cima, para a face do médico.

           Na terceira produção a gradação continua, o paciente começa a se despir, "man in underwear", como se estivesse olhando para o médico, ele olha para trás e fica apenas com uma peça de roupa - que desaparece no próximo desenho. O ambiente se abre novamente, o paciente não é o foco do desenho. A sala vazia aparece, temos o médico, uma enfermeira e o paciente nu à sua frente - na maca -, um ambiente tipicamente hospitalar - sem muitos objetos e cores. Os braços do paciente ficam voltados para baixo numa posição que o deixa vulnerável ao toque do outro. 
           
           Essa questão da vulnerabilidade aparece em muitos outros desenhos. Em "examination", por exemplo, o médico toca o paciente, a enfermeira de braços cruzados sorri. É interessante notar que a boca do paciente aparece aberta, os olhos bastante abertos e atentos. Nota-se que o paciente precisa ter uma confiança enorme no médico, algo muito difícil quando este, na maioria das vezes, é um desconhecido.
             Bom, resolvi escrever esse post porque muitas questões relacionadas a linguagem e saúde rondam os meus pensamentos há algum tempo. Talvez um dia escreva um ensaio na tentativa de fazer uma leitura bastante minuciosa dos desenhos de Nick Wadley. Compreendo a produção artística como uma forma de expressão do eu. Acredito que o ato de desenhar permite que o indivíduo (re)construa e (re)invente seus sentimentos e conhecimentos, de maneira que seus traços possam revelar suas angústias, seus medos e também suas alegrias. Meu desejo é compreender esse movimento de pensar e sentir na feitura dos desenhos e em tantas outras formas de expressão. Outro desejo é que as relações entre médico e paciente melhorem, que as consultas durem mais do que 10 minutos e que possamos nos sentir respeitados de verdade.


sábado, 26 de outubro de 2013

A menina no aquário


Pensando arte, pensando cores, pensando mundo...

Teoria das Cores - Herberto Helder

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.

O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia o que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor - sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro, através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.


In Os Passos em volta, ed. Assírio e Alvim (8ª Edição), Lisboa, 2001.
(texto publicado inicialmente em 1962, com alterações em edições posteriores)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

ELENA - Cinema e Psicanálise

            Assisti Elena já tem algum tempo. Conversa com um, indica pra outro e eu sempre estava falando sobre ele. Nas últimas semanas tive um trabalho pra fazer sobre psicanálise, o tema era livre. Então, por que não falar sobre esse filme tão profundo? Foi isso! Duas paixões - cinema e psicanálise. Eu e a Yasmin (minha adorada e sensível amiga) fizemos nossas considerações acerca do filme e de alguns conceitos da psicanálise muitíssimo interessantes àqueles que identificam com a temática. Espero que gostem! 

            O que é o cinema? Talvez essa questão possa parecer sem sentido. De que maneira nos relacionamos com o cinema e as outras artes? A estudiosa Mirian Tavares  diz que o cinema deixa de ser, hoje, fornecedor de imagens que entretém. Na verdade, ele se converte numa imensa fonte referencial que alimenta os outros e se alimenta. "O cinema, neste instante, chega mesmo a ocupar o lugar do real na produção da iconografia contemporânea."

            É sabido que o cinema e a psicanálise surgem, praticamente ao mesmo tempo, e é importante pensar como essas duas áreas são capazes de se constituírem enquanto "ferramentas" para compreensão da psique humana.

            Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, diz: “ver a si mesmo metamorfoseado diante de si e agir agora como se tivesse entrado em outro corpo, em outra pessoa”. Em nossa leitura, esse é o exercício feito por Petra Costa. O filme Elena se inicia com um sonho. Elena encontra-se em cima de um muro alto, enroscada em fios elétricos. A voz narrativa informa que é Petra quem está enroscada. Ela leva um choque e morre. Quem morre é Elena, com 20 anos no início da década de 1990. Nessa época, Petra ainda era uma criança, tinha apenas 7 anos. Elena passa a viver dentro de Petra "sinto você dentro de mim" [1], diz Petra. A irmã viva sente a irmã morta dentro dela.

            A mãe das duas meninas sonhava em ser atriz. Sentia também vontade de morrer, mas aos 16 anos, encontrou o pai de suas filhas - um homem recém chegado dos EUA. Quando estão se preparando para combater a ditadura militar na Guerrilha do Araguaia, a mãe é impedida de viajar, está grávida de seis meses. "Elena, você salvou a nossa mãe". Elena nasce e vive sua infância de maneira clandestina. Petra nasce na abertura política. Elena cresce e vai para Nova York ― inicia-se os sinais de depressão, a ausência de perspectiva para o futuro.
“Esse corpo tá doente. A vida o fez totalmente doente. Totalmente. Aquele eu descontrolado voltou... Eu ajo como se atuasse. Percebo tudo como numa tela de cinema.... Eu vou me degradar e escorrer por esse ralo.”
            Segundo Freud (2011:63), a neurose aparece como o desfecho de uma luta entre o interesse da autopreservação e as exigências da libido, uma luta que o Eu vencera, mas ao custo de severo sofrimento e renúncia. Renúncia devido à luta entre o Superego e o Ego. "Um ser dentro de mim que me odeia". A tensão que existe entre o Superego e o Ego é o que Sigmund Freud chama de "consciência de culpa"; ela se manifesta como necessidade de punição. No filme, torna-se claro essa relação com as cenas nas quais Petra, após a morte de Elena, nega a depressão; e reprimindo-se demasiadamente acaba demonstrando alguns sintomas nas formas de culpa, pesadelos e automutilação ao cortar os pulsos com 7 anos de idade.

            Sabe-se que a civilização incita a luta e a disputa na atividade humana. O instinto agressivo deriva-se do instinto de morte, que está ao lado de Eros ― instinto de destruição e instinto de vida. Em conformidade com Freud,
“(...) deveria haver, além do instinto para conservar a substância vivente e juntá-la em unidades cada vez maiores, um outro, a ele contrário, que busca dissolver essas unidades e conduzi-las ao estado primordial inorgânico. Ou seja, ao lado de Eros, um instinto de morte. Os fenômenos da vida se esclareceriam pela atuação conjunta ou antagônica dos dois. Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte. As manifestações de Eros eram suficientemente visíveis e ruidosas; era de supor que o instinto de morte trabalhasse silenciosamente no interior do ser vivo, para a dissolução deste, mas isso não constituía prova, é claro. Levava-nos mais longe da ideia de que uma parte do instinto se volta contra o mundo externo e depois vem à luz como instinto de agressão e destruição. Assim o próprio instinto seria obrigado ao serviço de Eros, na medida em que o vivente destruiria outras coisas, animadas e inanimadas, em vez de si próprio. Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a autodestruição, aliás sempre existente."
            Essa é uma luta essencial à esfera da vida humana. A frase que constava na carta deixada por Elena antes do suicídio ― “This time I was not supposed to fight" ― elucida a desistência em relação à vida. Pois, ao não suportar as frustrações e rejeições que foi sujeitada, Elena perde a batalha e comete suicídio.

            A irmã mais jovem, Petra, vai crescendo e durante boa parte de sua vida ouve sua mãe dizendo: “Você pode morar em qualquer lugar do mundo, menos em Nova York. Você pode escolher qualquer profissão, menos ser atriz”. Ela cresce e aos 18 anos decide ser atriz. Em busca de um material para participar de um workshop encontra um caderno, a letra de Elena. Encontra angústias que a trazem uma sensação de enorme identificação. Petra começa uma busca visando encontrar um espaço para Elena, um espaço fora de seu corpo. Ela precisava existir e se descobrir, na verdade. Trata-se de ser uma só e não duas. Petra precisa passar por uma espécie de "morte simbólica" para que ela pudesse se revelar. Numa dada altura do filme, Petra ressalta a fala de sua mãe "agora você está mais velha que Elena". Nesse momento, Petra passa a ressignificar a morte de sua irmã, "o medo de que o caminho fosse o mesmo começou a se desfazer... Tomando forma e corpo, renascendo para morrer de novo".

            Petra diz que Elena é sua “memória inconsolável”, e é chegada a hora de morrer de novo. Parece-nos a única maneira de abrigar a irmã num outro lugar, não mais dentro de si. Elena é a Ofélia que se suicida na peça de Shakespeare, pensa Petra. E essa, é outra Ofélia. "Eu, com muito mais consciência para sentir sua morte outra vez, sinto um imenso prazer acompanhado da dor, me afogo em você, em Ofélias." Nota-se que a perspectiva de Petra, em relação à morte de Elena, passa por uma ressignificação somente a partir do momento em que a torna consciente. Esse "prazer acompanhado da dor", para Freud, estaria totalmente relacionado aos instintos de Eros e morte. Em suas palavras, diz: "essa luta é o conteúdo essencial da vida, e por isso a evolução cultural pode ser designada, brevemente, como a luta vital da espécie humana".

            Se, por um lado, Elena não suporta a luta; Petra consegue atribuir um novo sentido a essa batalha. "Enceno a nossa morte para encontrar ar, para poder viver... As dores viram água, viram memória. Desse modo, Petra ressignifica a morte pela última vez, através da sublimação ― processo de transformar impulsos (destrutivos e construtivos) inconscientes em consciência, que seja benéfico e duradouro para a humanidade ―, ao elaborar o filme. 

            Nos momentos finais do filme, Petra Costa diz:

"As memórias vão com o tempo, se desfazem, mais algumas encontram consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra, e é dela que tudo nasce e dança".

            Essa passagem nos remete diretamente a Sigmund Freud quando aborda os meios paliativos para suportar a vida em sociedade.

 "A vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos dispensar paliativos (...). Existem três desses recursos, talvez: poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela. (...) As gratificações substitutivas, tal como a arte as oferece, são ilusões face à realidade, nem por isso são menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que tem a fantasia na vida mental." (2011, pp. 18-19).

            Observamos que Petra encontra na arte, a sublimação, como uma forma de alívio ao criar, produzir e atuar no filme. Dessa forma, a arte pode nos auxiliar a compreender o funcionamento psíquico. Freud, em A questão da análise leiga (1926), abordará a importância da artes (especificamente da literatura) para a formação psicanalítica. Entendemos, nesse texto, a obra de arte - mais do que um objeto a ser interpretado - como um sintoma do artista. Nota-se que o filme produzido por Petra Costa segue no caminho que nos permite "solicitar à criação artística as suas interpretações sobre a alma humana, que permitiriam ver, num jogo de espelhos, a própria face da construção psicanalítica" (KON, 2001, p. 95).

            Em nossa ótica fica claro que Petra Costa transforma seu luto num trabalho sui generis, um filme cheio de poesia e sentimento. Petra realiza um diálogo com sua irmã morta de maneira comovente, com poderes curativos. Também é interessante ressaltar a importância da Arte, afinal, mediante a elaboração do filme, Petra, não só sublimou, como também atribuiu um novo sentido à morte de Elena; e, em decorrência desse processo, deu outro sentido para a própria vida ao se desvincular de Elena, no sentido egóico.

            Não podemos nos esquecer também que o produto da sublimação constitui num bem cultural que ficará para a posteridade. Nas palavras de João Alexandre Barbosa (1994:24), em "Literatura nunca é apenas literatura" diz que essas "obras perenes, que permanecem, muitas vezes não permanecem pelos seus significados, mas porque nós, seus pósteros, podemos descobrir nelas relações de significantes que levam a outros significados." Elena morre em vida, enquanto Petra nasce da morte.


[1]  Todas as vezes que aparecerem, nesse texto, citações sublinhadas estamos nos referindo as falas do filme Elena, de Petra Costa.

Referências
FREUD, S. (1914). A questão da análise leiga. In; Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 173-248.
FREUD, S.  O mal-estar na Civilização. Tradução de Paulo César de Souza. 1 ed. São Paulo: Penguin: Classics Companhia das Letras, 2011.
KON, N. M. De Poe a Freud - O Gato Preto. BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro; Imago Ed., 2001, 91-127.
NIETZSCHE, F. W. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo; Companhia das Letras, 1992.
SAMPAIO, C. P. A incidência da literatura na interpretação psicanalítica. In; BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro; Imago Ed., 2002. p. 153-175.


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Man + Doctor, de Nick Wadley

O sentido transborda o desenho, me inunda. Fico sem saber o que dizer. Um pensamento aparece de repente: os desenhos,  as palavras, os ouvidos, a boca e o olhar nos ajudam a manter controle sob a solidão.

domingo, 21 de julho de 2013

Daddy’s Roommate, de Michael Willhoite


"Uma aula sobre amor, humanidade e consciência"



                     Daddy's Rommate foi publicado originalmente em 1991. O livro infantil (destinado às crianças entre 2 a 5 anos) aborda a questão da homossexualidade e gerou muita polêmica. Fui descobri-lo apenas agora, em 2013, no Brasil, em alemão, através do Ronaldo - que muito gentilmente fez a tradução do alemão para o português. 
            Abaixo compartilharei as imagens com a tradução para o português, com frases curtas embaixo das ilustrações é um livro bastante acessível e muito elucidativo. O pequeno narrador inicia a história com o divórcio de seus pais e prossegue com a chegada de um novo hóspede na casa: outro homem, assim apresenta a rotina do pai com o novo namorado. É interessante e bonito perceber que o livro apresenta a relação homossexual de forma positiva;  o casal faz o que todo casal heterossexual faz: cuidam do filho, demonstram carinho, realizam as tarefas da casa e eventualmente discutem. Excelente leitura!



No último ano papai e mamãe se separaram. / Agora um outro alguém se mudou para a casa do papai.





Papai e seu namorado Frank moram juntos. / Eles trabalham juntos.


comem juntos, / dormem juntos,



fazem a barba juntos / e de vez em quando brigam também.


mas a cada vez concordam novamente. / O Frank também gosta de mim.


Ele me conta piadas e mistérios, exatamente como o papai. / Ele apanha insetos para mim, para a aula de Ciências.



Lê para mim, / prepara gostosos pães com geléia.


E me conforta quando tenho pesadelos. / Nos finais de semana


nós fazemos juntos coisas legais e diferentes. / Nós vamos a estádios,


vamos ao Zoológico, / à praia.


Trabalhamos no jardim / e tocamos música à noite


Mamãe diz que o papai e o Frank são gays. / No começo eu não entendi, por isso ela me explicou.


Ser gay é apenas uma outra forma de amar. / E o amor é a melhor maneira de ser feliz.


Papai e o namorado dele são felizes juntos, / e assim eu sou feliz também.

 


sábado, 6 de julho de 2013

A ponte de Van Gogh



O lugar não importa: pode ser o Japão, a Holanda, a campina inglesa. 

Mas é absolutamente preciso que seja domingo.


O azul do céu ecoa na esmeralda do rio

E o rio reflete docemente as margens de relva verde-laranja

Dir-se-ia que da mansão da esquerda voou o lençol virginal de miss

Para ser no céu sem mancha a única nuvem.

A calma é velha, de uma velhice sem pátina

As cores são simples, ingênuas

A estação é feliz: o guarda da ponte chegou a pintar

De listas vermelhas o teto de sua casinhola.

E, meu Deus, se não fossem esses diabinhos de pinheiros a fazer caretas

E a pressa com que o homem da charrete vai:

- A pressa de quem atravessou um vago perigo

Tudo estivesse perfeito, e não me viesse esse medo tolo de a pequena ponte levadiça

Desabe e se molhe o vestido preto de Cristina Georgina Rosseti

Que vai de umbrela especialmente para ouvir a prédica do novo pastor da vila.


(Vinicius de Moraes)

domingo, 30 de junho de 2013

O que é humanização em saúde?

          Parece-me que a necessidade de falar desse tão delicado assunto nasce quando encontramos: a evolução científica e técnica dos serviços e a não evolução da  qualidade do contato humano. A meu ver, fica claro que a grande maioria dos profissionais em saúde focam-se nesse cientificismo e esquecem-se que estão lidando com seres humanos, esquecem os âmbitos emocional e psíquico que também formam o Homo Sapiens.
          É difícil pensar a questão da humanização em nosso sistema de saúde. Por outro lado, deve-se considerar que muitas dessas dificuldades poderiam ser enfrentadas com um pouco menos de peso se os profissionais e usuários do serviço se compreendessem, acolhessem um ao outro e não fossem impedidos de se manifestar/participar das ações necessárias.  
          Mas, espera aí, humanizar a saúde é só condicionar os profissionais a agirem de maneira mais solidária e compreensiva? Não. Humanizar também é investir nas condições de trabalho, é beneficiar qualidade de vida  dos profissionais, dos usuários e de toda a comunidade.
           É interessante pensar que no passado oferecia-se atenção e cuidado aos necessitados, e hoje não oferecem mais nada além da técnica. O conhecimento inunda os seres humanos a ponto deles se tornarem herméticos ao seu próximo.
          "A medicina positivista busca, a todo custo, evitar a morte e, talvez, não tenha sobrado disposição para promover a vida, ao menos com a qualidade que se deseja."
          "Depois do século XVIII o avanço tecnológico também trouxe consigo um aspecto frio e mecânico, maquinal, reducionista e algo desumano na relação entre as pessoas envolvidas com o atendimento à saúde."
         "Atualmente busca-se equilíbrio entre a técnica e as necessidades afetivas dos seres humanos." Busca-se... Busca-se...
          A medicina pretendia-se ser uma parte da ciência humanística. Ou seja, desejava-se compreender o ser humano como uma unidade indissolúvel, dotada de físico e psíquico. Neste sentido é preciso cuidar do doente (além da doença), considerar suas várias dimensões...
          Mas, afinal, o que é humanização em saúde? A desumanização busca humanizar-se...  Busca-se... Busca-se!
          Humanizar é compreender as angústias, as dúvidas, os medos e CUIDAR - no sentido mais profundo do termo - do paciente. Além disso, humanizar é aperfeiçoar os conhecimentos e valorizá-los. É respeitar a si e o outro, é prestigiar as relações visando o bem-estar geral; Humanizar é compreender/aliviar a dor e atender as queixas físicas e emocionais; Humanizar é ter tempo para conversar com o outro, é não economizar nas palavras, é informar o paciente sobre a doença, os sentimentos e o tratamento;  Humanizar é respeitar a privacidade do paciente e compreender a importância de se oferecer suporte emocional a ele; Humanizar também é oferecer boas condições de trabalho ao profissional de saúde; Humanizar é também repensar as questões de base. As grades curriculares de medicina, talvez?  Acredito que a formação de profissionais da área da saúde deve contemplar uma visão antropológica do ser humano, uma formação que vai muito além dos métodos, das técnicas e da ciência pura.



segunda-feira, 27 de maio de 2013

"A arte de ler ou como resistir à adversidade", de Michèle Petit


          Ando cada vez mais interessada nos estudos pragmáticos sobre a linguagem, que compreende a fala como ação. Nas últimas semanas tive oportunidade de ler uma excelente obra que se chama A arte de ler ou como resistir à adversidade. O livro é de uma antropóloga francesa, Michèle Petit, que estuda o uso da leitura em "contextos de crise". Parece-me que a leitura também é uma forma de ação e por isso relaciona-se a essa perspectiva de estudo que eu me interesso cada vez mais.

            Não poderia deixar de recomendar essa leitura aqui no blog, e por isso, resolvi fazer um resuminho da obra pra ver se vocês se animam :)

            Durante toda a obra a autora tece reflexões a respeito da atuação da leitura nesses "contextos de crise" que são as situações de violência, guerra, recessões econômicas e outras.  Um ponto que me chamou atenção foi o fato de que, segundo a autora, a leitura contribuiria para a reconstrução de si mesmo, e consequentemente, promoveria modificações psíquicas saudáveis ao leitor.

            Mais adiante a autora citará os "mediadores de leitura". Estes seriam profissionais empáticos que, com o auxílio da literatura, abririam um leque de reflexões ao seu interlocutor. E estes tornar-se-iam agentes transformadores da sua própria vida. Ou seja, através do exercício da leitura a interioridade do ser humano é tocada, modificada e lhe é permitido recuperar um sentimento de continuidade. Segundo as palavras da autora “para além desses contextos dramáticos, a leitura como o jogo, é uma maneira de se reafirmar, dia após dia” (p. 91). Petit irá recorrer a vários exemplos nos quais a narrativa em situação adversa serviu para transformar a visão de mundo do interlocutor/leitor.

 “Não importa o meio onde vivemos e a cultura que nos viu nascer, precisamos de mediações, de representações, de figurações simbólicas para sair do caos, seja ele exterior ou interior. O que está em nós precisa primeiro procurar uma expressão exterior, e por vias indiretas, para que possamos nos instalar em nós mesmos” (p. 115).

            Se considerarmos que nossas vidas são sempre tecidas por fragmentos, relatos, narrativas, histórias cheias de aventura, conseguiremos perceber a importância de se ter alguém que incentive a leitura, ou mesmo a prática da fala, o ato de narrar. Talvez nós pudéssemos dizer que a prática do falar/ouvir/ler desenvolve uma espécie de "trabalho terapêutico". 

            Michèle Petit também tratará dos espaços coletivos de leitura e ressaltará a importância da escolha de textos a serem utilizados nas dinâmicas. Segundo a autora, essas experiências literárias seriam responsáveis pela construção de uma sensibilidade - inerente ao ser  humano.

            Muitas outras questões são abordadas na obra. De qualquer forma, ficam aqui algumas delas que, a meu ver, são fundamentais. Termino este singelo texto com uma citação da própria autora, que sintetiza muito bem as ideias propostas por ela: “ler, apropriar-se dos livros, é reencontrar o eco longínquo de uma voz amada na infância, o apoio de sua presença sensível para atravessar a noite, enfrentar a escuridão e a separação” (p. 65).