O mundo fica pequeno quando não se tem casa e todos
os países são hostis (...) Pensei, sou um pobre desgraçado e ninguém se
importaria se eu cortasse os pulsos. E isso me deu força. Quando alguém é tão
pouca coisa para os outros tende a se cuidar.
Então, no meio daquele grupo, fui
acometido por uma intensa e opressiva sensação de orfandade, como se em algum
ponto tivesse me extraviado do caminho e agora me encontrasse numa órbita
distante, algo como o Planeta dos Macacos, só que com poloneses e romenos.
"A Síndrome de Ulisses", de Santiago Gamboa tem como
protagonista um jovem colombiano, Esteban, que vai para Paris com o sonho de se
tornar escritor, mas acaba "nos cantos sombrios em que os imigrantes, na
maioria ilegais, insistem em cultivar seus sonhos enquanto lutam pela
sobrevivência".
O jovem que trabalha em dois
empregos, ao invés de viver na famosa "cidade das luzes", luta pela
sobrevivência num ambiente pleno de escuridão. Em certos momentos declara
"medo de não poder suportar a vida que escolhera e ter de voltar a Bogotá,
derrotado". Em todo caso, Esteban ainda pode ser considerado privilegiado,
pois para ele ainda existe a possibilidade de voltar à pátria. A situação
inversa também é apresentada no livro, quando um colega do trabalho relata não
haver mais nem essa possibilidade.
Sou
coreano, mas no sentido mais triste do termo, ou seja, “coreano do norte” (...)
Fugi porque queria fazer com a minha vida o que me desse vontade (...) Depois
casei com Min Lin (...) e tive uma filha. A menina morreu aos sete anos. Em vez
de leite a mãe só podia lhe dar um mingau de fubá, o que ao final de um ano a
deixou cega, por causa da avitaminose. O governo do pai de Kim Il Sung nos dava
cinco quilos de arroz por mês, mas isso não era suficiente para crescer. Perdemos
nossa filha, e minha esposa, Min Lin, se recusou a viver. Entrou em depressão e
tentou suicidar-se. Engoliu uma bolsa de vidro moído e ficou no hospital por
mais de quatro meses. Depois foi presa, porque na Coréia do Norte o suicídio é
proibido (...) Foi então que decidi fugir do país (...) Eu a abandonara. A
sobrevivência nos transforma em pessoas duras, sem coração.
Neste
fragmento é possível notar a ideia clara da "Síndrome de Ulisses".
Sabemos que tal síndrome é um transtorno mental que acomete a maioria dos
imigrantes ilegais, desencadeando na sensação de perda por ter abandonado a sua
terra natal. O nome da síndrome vem do herói mítico Ulisses, que perdido
durante muitos anos se via impossibilitado de retornar à Ítaca.
As coisas difíceis que deve ter vivido, sua
auto-estima lá no chão, a sensação de estar indefeso e o medo, tudo isso deve
tê-lo levado ao estresse crônico e à depressão. Tem uma doença muito
relacionada com esses sintomas, disse o médico, mas não tinha nome. Ainda não
havia sido batizada como síndrome do imigrante ou síndrome de Ulisses.
Esteban vive num lugar pequeno e após desistir do curso na universidade e
iniciar seu trabalho num restaurante chinês, conhece aqueles que depois se
ocupam de boa parte da narrativa, são esses os imigrantes ilegais que vivem
numa Paris marginal. É interessante notar que Esteban vai para Paris, uma
metrópole das letras, e lá encontra incapacidade de vivenciar a experiência
criativa como escritor.
(...) mas enfim, disse a mim
mesmo, minha vida, por escolha própria, tinha agora mais a ver com todos eles
do que com minhas lembranças de Bogotá, e era justamente isso o que tinha
diante de mim, nem mais nem menos (...)
Vivendo nessa Paris cheia de frieza
e hostilidade, a relação com os nativos é muito pouca. Existe uma tendência
muito grande que faz com que os grupos de "semelhantes" acabem se
aproximando. Nas poucas vezes em que se relaciona-se com os franceses o
imigrante acaba numa fuga dos problemas por meio do vício. No romance de Gamboa
observamos muito profundamente a relação com a sexualidade e com o mundo
feminino. Walter Benjamin em "Despertar do Sexo" faz uma descrição
que se assemelha muito com a primeira cena a respeito da sexualidade no livro
de Gamboa, ele diz: "numa daquelas ruas, em que mais tarde perambulei sem
descanso durante a noite (...), quando foi chegado o momento, o despertar do
sexo em circunstâncias das mais singulares"
Agora que
minha vida sexual havia se enriquecido, nada me atraía mais do que acrescentar
outra marca na minha arma, entre outras coisas porque já começava a sentir
aquela curiosidade dos imigrantes em relação às mulheres francesas.
A questão das mulheres é um ponto
bastante interessante na narrativa, afinal, essa temática perpassa a história
de outros imigrantes, como Nestor, que é colombiano e Jung, coreano. Num dado
momento do livro encontramos a seguinte frase:
A poesia e o exílio são velhos companheiros; o
exílio traz com ele a tristeza do que se perdeu, o que já é em si um sentimento
lírico; o exílio forçado recorre à lírica para ser denunciado; o exílio tira a
lírica dos seus lugares habituais, o amor ou a gesta pátria, e lhe dá uma nova
temperatura, o aproxima da realidade do mundo (...) o exílio trabalha um
material poético relativamente novo, e que, claro, no seu caso, como no de
tantos, esta lírica do exílio estava ligada a uma ideia do mundo, a uma visão
política da história e das relações entre os seres humanos (...)
Aqui, parece-nos que existe uma
questão que coloca o imigrante num posicionamento a respeito do que ele teria
sido e não do que ele é; a questão do exílio, na qual resta lutar pela
sobrevivência. A Síndrome de Ulisses
retrata a situação dos imigrantes que sentem
o exílio e vivem a frustração de não alcançar o que almejavam.
O fato de Esteban ter pretensão em
tornar-se escritor é bastante importante. É necessário criar uma realidade já
que não é possível apresentar a realidade tal como ela é. A questão da
representação é apresentada nessa "literatura do exílio" e traz
aspectos relacionados sobre a "vida do autor" e o que ele descreve
sobre esse "sujeito da literatura". Existe uma certa semelhança entre
o personagem e Gamboa, ambos estão distante de sua pátria.
Stuart
Hall, em A identidade cultural na
pós-modernidade, nos faz pensar as culturas nacionais como uma fonte de
significados, focos de identificação e um sistema de representação. No entanto,
sabemos que o eu se constitui em
correspondência a um outro. Nietzsche,
em O Nascimento da Tragédia, diz:
“ver a si mesmo metamorfoseado diante de si e agir agora como se tivesse
entrado em outro corpo, em outra pessoa”. Em nossa leitura fica claro que não é
possível criar algo homogêneo, uma cultura homogênea. Talvez essa
impossibilidade de se transformar num "semelhante" seja a dor mais
intensa do exilado, que encontra-se fora de sua pátria e também do seu próprio eu.
Recomendo
fortemente a leitura!
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