Os
meus gatos
gostam
de brincar
com
as minhas baratas
(LOPES, 2002 em Antologia. P.71)
Antes
de iniciar a minha tentativa de “análise” do poema “Autobiografia Sumária de Adília Lopes” – da poetisa contemporânea
que é o pseudônimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira –
gostaria de dizer que quando estudei essa poetisa logo me apaixonei pela sua
poesia. Depois que li alguns textos e fui adentrando o seu mundo literário,
então... nem se fala!
Dotada
de um estilo muito peculiar, Adília utiliza diversos elementos narrativos em
seus poemas, ora predominando nas repetições, ora infantilizando-os – como é o
caso do uso do verbo “brincar” neste poema. Também é constante o uso de figuras
animalescas, como neste caso – gatos e baratas.
Logo
no primeiro verso Adília diz: “Os meus
gatos”. Ou seja, não é qualquer gato, é o gato dela. Sabendo que o gato é
um animal com certa simbologia, que ora oscila entre tendências maléficas e benéficas,
em diferentes culturas, há certo mistério que se insere na figura do gato, e
que pode ser facilmente relacionado à figura de Adília, que ao mesmo tempo é
Maria José. Portanto, não à toa que tal figura está em sua “Autobiografia”.
A
barata, por sua vez, é a segunda figura animalesca que aparece no último verso
do poema de Adília: “com as minhas
baratas”. Esta representará aquilo que está à margem, a hipocrisia social
ou a solidão. Como sabemos, para a produção de um artista a solidão é
indispensável para sua reflexão e criação artística.
É possível identificarmos que Adília une dois extremos, a barata – que
naturalmente não é vista com bons olhos pelas pessoas, por ser relacionada à
sujeira –, e o gato – facilmente cultivado como animal de estimação por grande
parte das pessoas. Por esta simples metáfora, a poetisa nos transmite a idéia
de que o ocultismo do gato e a solidão da barata acabam se completando, assim
como as pessoas são constituídas por pólos diferentes, como Maria José e
Adília, que são uma só.
Neste sentido começamos a perceber que há
uma luta contra um discurso do senso comum, onde as pessoas podem viver sem
seguir um padrão que limita as vontades próprias. O apreço por animais tidos
pelo senso comum como repugnantes e indignos de admiração – como é o caso da
barata – faz parte do esforço em fugir das convenções sociais e psicológicas
vigentes.
Enfim, percebe-se que Adília Lopes,
mesmo com sua escrita aparentemente simples, é capaz de fazer uma profunda
análise da vida cotidiana do ser humano, da qual fazem parte diversos elementos
– inclusive baratas. Através dos seus
escritos, Adília faz suas denúncias, desenvolve suas descrições alternativas e
se distancia da crueldade legitimada de tantas formas. Fugindo dos padrões,
utilizando uma sintaxe quase que incompatível com a escrita poética, utiliza os
animais como muito mais do que simples substantivos.
"Por um lado, os bichos –
e eu gosto muito de bichos – serão queridas baratas. Mas não há rostos baratos. Não há caras caras e caras
baratas. Vivemos num momento em que
as pessoas fazem muitas operações plásticas ou gastam muito dinheiro com a aparência e eu acho isso
um logro.”
Diante
desta nossa última citação fica claro que Adília Lopes se utiliza da arte como
forma de elaborar severas críticas à sociedade que lhe é contemporânea. Desse
seu esforço crítico, nos é legada uma rica fonte de reflexões – inclusive sobre
a linguagem.