sábado, 26 de janeiro de 2013

Em que sentido a fala do médico pode ser entendida como um ato de fala "curativo"?




            Observamos a existência de uma relação dialética entre pensamento e linguagem. Talvez não seja possível definir a precedência de um elemento sobre o outro. Neste sentido, o uso da língua deve estar em consonância com aquilo que se concebe acerca de uma dada prática social. No tocante ao objeto do texto, devemos esclarecer que entendemos a fala médica como uma interlocução de alta complexidade, ocorrida em situações específicas: os processos de tratamento médico de doentes. A própria definição que damos a tal processo pressupõe a existência de pelo menos dois elementos, o médico e o paciente. Portanto, há de se estabelecer entre ambos uma dialógica. Infelizmente, ainda predomina em hospitais, clínicas e consultorios uma visão marcada de esteriótipos bem delimitados - médico como detentor de saber em relação à saúde e pacientes como um simples objeto inerente à prática médica.
            A fala médica não pode deixar de ser entendida como uma prática geradora de consequências, indissociavelmente ligada às ações profissionais do médico. Nossa ponderação não defende a anulação do papel social do médico em prol do estabelecimento de relações pessoais. Entretanto, a atuação do profissional de medicina deve levar em conta o caráter humano que lhe é inerente, como a qualquer prática social. Destarte, o médico que buscasse compreender a fragilidade e emoção que envolve o paciente/família passaria a identificar-se com o Outro, quebrando a hierarquia médico-paciente; mais satisfatório seria o diálogo para ambos. O médico tomaria um posicionamento mais solidário e humanizador, dando uma chance à fala do paciente e seus familiares. Por outro lado, o paciente criaria mais confiança no médico - de modo a vê-lo como um aliado na luta contra a doença. O processo de tratamento decorrente de tal relação seria fundamentalmente uma construção coletiva.
             Analisando a questão da linguagem de um ponto de vista pragmático, entendemos que a enunciação do médico tem o poder de construir uma força "curativa" e transformadora. Pressupondo que uma fala tem seu sentido sempre reconstruído pelo interlocutor, abre-se espaço para uma vasta gama de interpretações, sempre baseadas no repertório cultural desse receptor. Essas interpretações são potenciais geradoras de atitudes por parte do paciente. A própria compreensão do diagnóstico facilita a implementação de modalidades de tratamento; obtém-se a colaboração do paciente. Sem recorrer a quaisquer análises teóricas, podemos  afirmar a partir de nossa experiência de vida que o diálogo praticamente inexiste em boa parte dos casos. Diagnóstico e subsequente prescrição médica se fazem à revelia do próprio paciente, ao qual resta a perplexidade e, o mais cruel, a passividade. Analisemos uma situação:
                    Médico 1: "Não temos mais o que fazer, agora é só esperar"
                    Médico 2: "O caso é extremamente grave, mas vamos continuar lutando"  
               Na fala do médico 1 percebemos o enorme distanciamente entre ele e o paciente. Poderíamos pensar que essa fala reflete a tentativa de afastamento do próprio sentimento do médico, na medida em que este enxerga o paciente como uma doença e, portanto, apenas um objeto sobre o qual exerce uma ação. Já a fala do médico 2 não escamoteia a gravidade do diagnóstico; todavia, a partícula "mas" exerce uma dupla função: (i) relativiza o teor da primeira sentença e (ii) propõe uma alternativa. O próprio termo "vamos" coloca o médico na condição de parceiro do paciente. A possibilidade de cura, portanto, não está perdida, visto que o médico apresenta como um processo ainda em curso, dependendo tanto de suas ações como da atitude do próprio enfermo. 





sábado, 5 de janeiro de 2013

O ser humano vivencia a si mesmo como algo separado do universo

Eu sei que você e eu
Nunca fomos iguais.
E eu costumava olhar para as estrelas à noite
E queria saber de qual delas eu vim.
Porque eu pareço ser parte de um outro mundo
E eu nunca saberei do que ele é feito.
A não ser que você me construa uma ponte, construa-me uma ponte,
Construa-me uma ponte de amor.
(Mc Kean - poema de um autista retirado da monografia de Maria Lúcia Salazar Machado) 

                    Hoje li um texto interessantíssimo que trata do autismo - um distúrbio do desenvolvimento humano que, apesar dos muitos anos de estudo, ainda conserva divergências até mesmo científicas -, o texto de Gustavo Serrate (jornalista e cineasta independente) conta um pouco da história de Carly Fleischmann. Divulgo esse texto na tentativa de que ele chegue ao máximo possível de pessoas, pois, me entristece perceber que seja pela diversidade de características ou pela falta de informação deste transtorno, muitas crianças, jovens autistas e suas famílias sofrem preconceito nos mais diversos grupos da sociedade. Que esse texto possa elucidar diversas questões. 

"O autismo me prendeu dentro de um corpo que eu não posso controlar" - conheça a história de Carly Fleischmann, uma adolescente que aprendeu a controlar o autismo para se comunicar através de palavras escritas em um computador após 11 anos de enclausuramento dentro de si mesma, e assista também o video interativo "Carly's Café", no qual você poderá vivenciar alguns minutos da experiência de um autista por trás dos olhos de um. 

Lê se na tela de um computador: "Meu nome é Carly Fleischmann e desde que me lembro, sou diagnosticada com autismo",a digitação é lenta, a idéia não é concluída sem algumas interrupções, é assim que Carly trava contato com o mundo.Carly é uma adolescente de Toronto, Canadá, e atravessou uma batalha na vida. Ajudada pelos pais, ela conseguiu superar a barreira máxima do isolamento humano.

“Quando dizem que sua filha tem um atraso mental e que, no máximo atingirá o desenvolvimento de uma criança de seis anos, é como se você levasse um chute no estômago", diz o pai de Carly. Ela tem uma irmã gêmea que se desenvolvia naturalmente, e aos dois anos, ficou claro que havia algo de errado. Ela estava imersa no oceano de dados sensoriais bombardeando seu cérebro constantemente. Apesar dos esforços dos pais, pagando profissionais, realizando tratamentos, ela continuava  impossibilitada de se comunicar e de ter uma vida normal. O pai de Carly explica que ela não era capaz de andar, de sentar, e todos doutores recomendavam: "Você é o pai. Você deve fazer o que julgar necessário para esta criança".

Eram cerca de 3 ou 4 terapeutas trabalhando 46 horas por semana. Os terapeutas acreditavam que Carly fosse mentalmente retardada, portanto, sem esperanças de algum dia sair daquele estado. Amigos recomendavam que os pais parassem o tratamento, pois os custos eram muito altos. O pai de Carly, no entanto, acreditava que sua criança estava ali, perdida atrás daqueles olhos: "Eu não poderia desistir da minha filha".

Subitamente aos 11 anos algo marcante aconteceu. Ela caminhou até o computador, colocou as mãos sobre o teclado e digitou lentamente as letras: H U R T - e um pouco depois digitou - H E L P. Hurt, do inglês "Dor", e Help significa "Socorro". Carly nunca havia escrito nada na vida, nem muito menos foi ensinada, no entanto, foi capaz de silenciosamente assimilar conhecimento ao longo dos anos para se comunicar, usando a palavra pela primeira vez, em um momento de necessidade extrema. Em seguida, Carly correu do computador e vomitou no chão. Apesar do susto, ela estava bem. "Inicialmente nós não acreditamos. Conhecendo Carly por 10 anos, é claro que eu estaria cético", disse o pai.

Os terapeutas estavam ansiosos para ver provas e os pais incentivavam Carly ao máximo para que ela se comunicasse  novamente. O comportamento histérico de Carly permanecia exatamente como antes e ela se recusava a digitar. Para força-la a digitar, impuseram a necessidade. Se ela quisesse algo, teria que digitar o pedido. Se ela quisesse ir a algum lugar, pegar algo, ou que dissessem algo, ela teria que digitar. Vários meses se passaram e ela percebeu que ao se comunicar, ela tinha poder sobre o ambiente. E as primeiras coisas que Carly disse aos terapeutas foi "Eu tenho autismo, mas isso não é quem eu sou. Gaste um tempo para me conhecer antes de me julgar".

A partir dai, como dizem os pais, Carly "encontrou sua voz" e abriu as portas de sua mente para o mundo. Ela começou  a revelar alguns mistérios por trás do seu comportamento de balançar os braços violentamente, e de bater a cabeça nas coisas, ou de querer arrancar as roupas: "Se eu não fizer isso, parece que meu corpo vai explodir. Se eu pudesse parar eu pararia, mas não tem como desligar. Eu sei o que é certo e errado, mas é como se eu estivesse travando uma luta contra o meu cérebro". "Eu gostaria de ir a escola, como as outras crianças. Mas sem que me achassem estranha quando eu começasse a bater na mesa, ou gritar. Eu gostaria de algo que apagasse o fogo". Carly explica ainda que a sensação em seus braços é como se estivessem formigando, ou pegando fogo. Respondendo a uma das perguntas que fizeram a ela, sobre porquê às vezes ela tapa os ouvidos e tapa os olhos, ela explica que isso serve para ela bloquear a entrada de informações em seu cérebro. É como se ela não tivesse controle e tivesse que bloquear o exterior para não ficar sobrecarregada. Ela explica ainda que é muito difícil olhar para o rosto de uma pessoa. É como se tirasse milhares de fotos simultaneamente com os olhos, e é muita informação para processar. O cérebro de Carly não possui a capacidade de catalizar a quantidade imensa de informações para os sentidos, e consequentemente, ela não pode lidar com a quantidade excessiva de informação absorvida.

Segundo o pai de Carly, ela faz questão de dizer, que é uma criança normal, presa em um corpo que a impede de interagir normalmente com  o mundo. O Pai de Carly teve a chance de finalmente conhecer a filha. A partir do momento em que ela começou a escrever, se abriu para o mundo. Carly hoje está no twitter e no facebook. Ela conversa com as pessoas e responde dúvidas sobre o autismo. Com ajuda do pai ela escreveu um livro chamado Carly's Voice (A voz de Carly). Entre os mais variados comentários que ela recebe sobre o livro, um crítico disse: "A história de Carly é um triunfo. O autismo falou e um novo dia nasceu".


Segue aqui o link do curta-metragem "Carly's Café", baseado em um trecho do livro de Carly.
http://carlyscafe.com/

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

É tempo de viver sem medo


"Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todas, todos temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais." (Eduardo Galeano)




terça-feira, 1 de janeiro de 2013

E é tudo o mesmo: e verbo o pensamento


             No final/início de ano eu fico mais reflexiva. Acho que isso tem a ver com esses clichês de "balanços", "retrospectivas", "promessas"... E no fundo a gente - querendo ou não - pensa em como foi o ano que passou. Nesta virada em especial tive uma nova experiência - vivenciei a passagem de ano com a distância de um oceano inteiro da maior parte das pessoas que amo - e, felizmente, sobrevivi! Prefiro não fazer um "balanço" de 2012 porque a gente sempre tem que fazer um recorte e dissertar sobre ele - e fazer isso é injusto por diversos motivos. Só queria registrar que eu aprendi uma coisa - e talvez tenha me dado conta disso somente agora, mas ela foi se manifestando num acúmulo de vivências -, aprendi a sentir mais! Estou aprendendo a transformar sentimentos em palavras. E eu desejo muito que isso continue! Desejo que os votos todos de felicidade continuem por todos os dias do ano. Que as reflexões continuem sempre, sempre... E mais do que isso surjam as ações!!!  Que a gente consiga olhar pro lado, ver, ouvir, sentir e dizer! Desejo que as pessoas percebam que o mundo só vai mudar quando elas mudarem, quando elas compreenderem que somos a diferença. Afinal:    

"Nada começa: tudo continua.
Onde estamos, que vemos só passar?
O dia muda, lento, no amplo ar;
Múrmura, em sombras, flui a água nua.

Vêm de longe,
Só nosso vê-las teve começar.
Em cadeias do tempo e do lugar,
É abismo o começo e ausência.

Nenhum ano começa. É Eternidade!
Agora, sempre, a mesma eterna Idade,
Precipício de Deus sobre o momento,

Na curva do amplo céu o dia esfria,
A água corre mais múrmura e sombria
E é tudo o mesmo: e verbo o pensamento."

 in Poesia 1918-1930 - Fernando Pessoa