terça-feira, 31 de julho de 2012

A dona Perfeição


“Adoramos a perfeição,
porque não a podemos ter;
repugna-la-íamos, se a tivéssemos.
O perfeito é desumano,
porque o humano é imperfeito.”
 (Fernando Pessoa)

                Quando a Juliana nasceu, a primeira coisa que os médicos disseram foi: -“ Ela é perfeita!”. Nascera com quase quatro quilos, rosadinha, seu coraçãozinho batia forte, seus dedinhos pegavam o meu polegar com vontade! Era linda, linda, linda! Passara por todos os exames médicos. Ali estava minha pequena, minha filha tão esperada e amada antes mesmo de chegar ao mundo. Eu só tinha motivos para comemorar.
                Os anos iam passando e a Juju só me dava orgulho. Era disposta, brincava, dançava, pulava, correspondia a todas expectativas. Seu cabelinho chanel sedoso, bochechas avermelhadas, olhos brilhantes, demonstravam sua saúde rara. A vida era doce e alegre. Juju não se queixava de nada, nunca. Era uma criança felicíssima... E normal, como não poderia deixar de ser... Chorava, não queria comer verduras e legumes, caia de bicicleta. E era isso tudo que fazia ela ser a criança mais perfeita que eu já conheci.
                Foi na 1ª série que a professora de Juliana me procurou para perguntar o que estava acontecendo com a minha pequena. Eu fiquei muito surpresa! Minha linda sempre foi muito sapequinha! Será que ela aprontou alguma coisa na escola? O que será que aconteceu? Embora eu tivesse que trabalhar durante todo o dia, procurava me manter o mais próxima possível de todas as atividades da minha filha. A vida não é fácil! Chegando na escolinha a professora Bete diz: “– O  que está acontecendo com a Juju, mamãe? Ela anda tão aérea, parece estar no mundo da lua... Não está acompanhando a aula, fica sozinha no recreio...
              Na hora de dormir eu fui até a caminha da minha pequena pra conversar. O que está acontecendo, meu bem?  Fala com a mamãe. Ela caiu aos prantos e disse: “– Eu não sei, mamãe! Não consigo aprender nada, meus amiguinhos já não gostam mais de mim. Todo mundo acha que eu sou burra!
           Fiquei desesperada. O que fazer pra ver minha menina sorrir novamente? Como deveria agir naquele momento? Comecei a procurar os médicos. Fui ao psicólogo, neurologista, psicopedagogo... “– Fique tranquila! É uma fase passageira!”, “Ela ainda não se adaptou a escolinha”... “Talvez ela sinta falta do pai”. É, eu sei. Ser mãe solteira não é fácil. Mas o que eu poderia fazer? Cada dia que passava Juliana inventava uma desculpa para não ir à escola. Já estava sem ânimo para fazer qualquer atividade...
             Aquele ano foi muito difícil... Juliana repetira de ano e isso fazia com que ela se sentisse cada vez mais triste. Comecei novamente uma investigação. E dessa vez, não cessaria sem saber o que o meu tesouro mais precioso tinha. Depois de muitos exames, aquela menina que nascera com a marca de “ela é perfeita” tinha um “defeito de fabricação”. Minha lindinha poderia ter os melhores estímulos possíveis, e mesmo assim os médicos não poderiam garantir que ela acompanhasse as crianças da idade dela.
                “– Ela  tem dislexia”, a médica disse. Eu nem sabia do que se tratava. Doutora Virgínia me disse que dislexia é uma dificuldade de aprendizado da Linguagem: em leitura, soletração, escrita, cálculos matemáticos.... E que não tem nada a ver com falta de interesse, de motivação, de esforço ou de vontade. Confesso que essa notícia partiu o meu coração. Tudo o que eu mais queria na vida era ver a minha filha feliz, muito feliz. Como seria sua vida daqui em diante? Ela seria capaz de levar uma vida “normal”?
               Comecei a refletir sobre a “perfeição”. O que precisamos pra ser perfeitos? Ser perfeito é o ideal? Penso que a perfeição é sempre um sonho, e sonhos podem nos ajudar a construir a nossa vida e alcançar a felicidade. Mas pra ser feliz temos mesmo que ser perfeitos? O jeito é não perder a esperança! Mas como meu tesouro viveria sabendo que suas limitações poderiam (talvez) tornar seus sonhos inviáveis?     
               Os anos foram se passando e Juju se saia muito bem nas atividades desenvolvidas à ela. A escola e eu fizemos um acordo de cooperação nessa longa jornada – o que foi muito importante! Um belo dia eu pude concluir que minha filha é humana, e por isso, não poderia ser perfeita. E eu continuarei amando-a assim – cada vez mais – se é que isso é possível. Agora havia descoberto que a dislexia era uma maneira de ser e de aprender; era a forma que minha filha mostrava sua expressão singular, mostrava que era uma menina genial que também tinha muito para ensinar – além de aprender.
                Aprendi que a perfeição não é um padrão a ser seguido. Aprendi que nem todas mulheres gostam de rosa, como nem todos os homens gostam de azul. Aprendi que o bom da vida é viver cada momento desvendando sua mais pura cor. Aprendi que o caminhar é um dégradé maravilhoso. Que no início do dia o céu é cinza, mas pode ser azul. Que ao meio dia pode estar chovendo, mas podemos enxergar um lindo arco-íris no horizonte. Que no final do dia o céu vai ficando avermelhado nos mostrando a cor do sentimento mais nobre que existe: o amor.
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segunda-feira, 9 de julho de 2012

Mar Adentro


Ninguém é igual a ninguém. 
Todo o ser humano é um estranho ímpar.
     (Carlos Drummond de Andrade)    
  
         Mar Adentro
– logo na primeira cena – coloca o espectador no lugar do protagonista. Diante de uma janela voamos em busca de sonhos e desejos de liberdade. A imagem é a partir do olhar de Ramón Sampedro e pelo olhar do espectador – nos colocando no lugar dele e de seu observador. A todo momento estamos lidando com o dentro e o fora, a vida e a morte, os movimentos e a paralisia que vão nos envolvendo e nos sensibilizando, além de nos colocar em contato com a temática da eutanásia – assunto tão polêmico. Sampedro coloca em cheque a regulação da vida e da morte pelo Estado e pela Igreja e acusa a hipocrisia do Estado laico diante da moral religiosa.
       O polêmico debate com a igreja sobre a eutanásia aparece na figura de um padre, que é tetraplégico também. Numa visita a Sampedro a conversa deles é mediada por um seminarista – que com uma expressão confusa parece estar prestes a entrar numa crise existencial e religiosa. Num dado momento Ramón e o padre iniciam uma comunicação aos berros devido a impossibilidade de se encontrarem por conta da estreita escada existente na casa de Ramón. De um lado fala-se que a Igreja Católica não tem moral para falar de respeito à vida após a Inquisição, e do outro, fala-se sobre a importância de manter a vida.  
         Em meio a diversas discussões aparece a advogada Julia – oposição direta ao padre – que pretende cuidar do caso de Sampedro – portadora de uma doença degenerativa hereditária –, a advogada aparece como um canal entre Sampedro de agora e de antes do acidente. Em conjunto eles escrevem um livro, partilham sentimentos, afetos e desejos. Após anos e anos impossibilitado do contato físico Ramón encontra Rosa, “alguém que realmente o ama e o ajuda a morrer”. Ramón deixa um testamento concluindo o argumento da vida como obrigação, e aliando a ela um debate que sinaliza as tensões e as questões de poder que permeiam a vida e a morte: “negar la propiedad privada de nuestro propio ser es la más grande de las mentiras culturales. Para una cultura que sacraliza la propiedad privada de las cosas – entre ellas la tierra y el agua – es una aberración negar la propiedad más privada de todas, nuestra Patria y Reino personal. Nuestro cuerpo, vida y conciencia. Nuestro Universo".
       É óbvio que após assistirmos o filme Mar Adentro somos inclinados a pensar o que faríamos no lugar de Ramón Sampedro ou de seus familiares? Independente das diversas opiniões sobre a eutanásia, percebamos a importância de viver a vida com mais respeito ao ser humano.