Assisti Elena já tem algum
tempo. Conversa com um, indica pra outro e eu sempre estava falando sobre ele.
Nas últimas semanas tive um trabalho pra fazer sobre psicanálise, o tema era
livre. Então, por que não falar sobre esse filme tão profundo? Foi isso! Duas
paixões - cinema e psicanálise. Eu e a Yasmin (minha adorada e sensível amiga)
fizemos nossas considerações acerca do filme e de alguns conceitos da
psicanálise muitíssimo interessantes àqueles que identificam com a temática.
Espero que gostem!
O que é o cinema? Talvez essa questão possa parecer sem sentido. De que
maneira nos relacionamos com o cinema e as outras artes? A estudiosa Mirian
Tavares diz que o cinema deixa de ser, hoje, fornecedor de imagens que
entretém. Na verdade, ele se converte numa imensa fonte referencial que
alimenta os outros e se alimenta. "O cinema, neste instante, chega mesmo a
ocupar o lugar do real na produção da iconografia contemporânea."
É sabido que o cinema e a psicanálise
surgem, praticamente ao mesmo tempo, e é importante pensar como essas duas
áreas são capazes de se constituírem enquanto "ferramentas" para
compreensão da psique humana.
Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, diz: “ver a si mesmo metamorfoseado
diante de si e agir agora como se tivesse entrado em outro corpo, em outra
pessoa”. Em nossa leitura, esse é o exercício feito por Petra Costa. O filme Elena
se inicia com um sonho. Elena encontra-se em cima de um muro alto,
enroscada em fios elétricos. A voz narrativa informa que é Petra quem está
enroscada. Ela leva um choque e morre. Quem morre é Elena, com 20 anos no
início da década de 1990. Nessa época, Petra ainda era uma criança, tinha
apenas 7 anos. Elena passa a viver dentro de Petra "sinto você dentro
de mim" [1], diz Petra. A irmã viva sente a irmã morta dentro
dela.
A mãe das duas meninas sonhava em ser atriz. Sentia também vontade de
morrer, mas aos 16 anos, encontrou o pai de suas filhas - um homem recém
chegado dos EUA. Quando estão se preparando para combater a ditadura militar na
Guerrilha do Araguaia, a mãe é impedida de viajar, está grávida de seis meses. "Elena,
você salvou a nossa mãe". Elena nasce e vive sua infância de maneira
clandestina. Petra nasce na abertura política. Elena cresce e vai para Nova
York ― inicia-se os sinais de depressão,
a ausência de perspectiva para o futuro.
“Esse corpo tá doente. A vida o
fez totalmente doente. Totalmente. Aquele eu descontrolado voltou... Eu ajo
como se atuasse. Percebo tudo como numa tela de cinema.... Eu vou me degradar e
escorrer por esse ralo.”
Segundo
Freud (2011:63), a neurose aparece como o
desfecho de uma luta entre o interesse da autopreservação e as exigências da
libido, uma luta que o Eu vencera, mas ao custo de severo sofrimento e
renúncia. Renúncia devido à luta entre o Superego e o Ego. "Um ser
dentro de mim que me odeia". A tensão que existe entre o Superego e o
Ego é o que Sigmund Freud chama de "consciência de culpa"; ela se
manifesta como necessidade de punição. No filme, torna-se claro essa relação
com as cenas nas quais Petra, após a morte de Elena, nega a depressão; e
reprimindo-se demasiadamente acaba demonstrando alguns sintomas nas formas de culpa, pesadelos e automutilação ao cortar
os pulsos com 7 anos de idade.
Sabe-se que a civilização incita a luta e a disputa na atividade
humana. O instinto agressivo deriva-se do instinto de morte, que está ao lado
de Eros ― instinto de destruição e instinto de vida. Em conformidade com Freud,
“(...) deveria haver, além do
instinto para conservar a substância vivente e juntá-la em unidades cada vez
maiores, um outro, a ele contrário, que busca dissolver essas unidades e
conduzi-las ao estado primordial inorgânico. Ou seja, ao lado de Eros, um
instinto de morte. Os fenômenos da vida se esclareceriam pela atuação conjunta
ou antagônica dos dois. Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto
instinto de morte. As manifestações de Eros eram suficientemente visíveis e
ruidosas; era de supor que o instinto de morte trabalhasse silenciosamente no
interior do ser vivo, para a dissolução deste, mas isso não constituía prova, é
claro. Levava-nos mais longe da ideia de que uma parte do instinto se volta
contra o mundo externo e depois vem à luz como instinto de agressão e
destruição. Assim o próprio instinto seria obrigado ao serviço de Eros, na
medida em que o vivente destruiria outras coisas, animadas e inanimadas, em vez
de si próprio. Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria
de aumentar a autodestruição, aliás sempre existente."
Essa
é uma luta essencial à esfera da vida humana. A frase que constava na carta
deixada por Elena antes do suicídio ― “This time I was not supposed to
fight" ― elucida a desistência em relação à vida. Pois, ao não
suportar as frustrações e rejeições que foi sujeitada, Elena perde a batalha e
comete suicídio.
A irmã mais jovem,
Petra, vai crescendo e durante boa parte de sua vida
ouve sua mãe dizendo: “Você pode morar em qualquer lugar do mundo, menos em
Nova York. Você pode escolher qualquer profissão, menos ser atriz”. Ela
cresce e aos 18 anos decide ser atriz. Em busca de um material para participar
de um workshop encontra um caderno, a letra de Elena. Encontra angústias que a
trazem uma sensação de enorme identificação. Petra começa uma busca visando
encontrar um espaço para Elena, um espaço fora de seu corpo. Ela precisava
existir e se descobrir, na verdade. Trata-se de ser uma só e não duas. Petra
precisa passar por uma espécie de "morte simbólica" para que ela
pudesse se revelar. Numa dada altura do filme, Petra ressalta a fala de sua mãe
"agora você está mais velha que Elena". Nesse momento, Petra
passa a ressignificar a morte de sua irmã, "o medo de que o caminho fosse
o mesmo começou a se desfazer... Tomando forma e corpo, renascendo para morrer
de novo".
Petra diz que Elena é sua “memória
inconsolável”, e é chegada a hora de morrer de novo. Parece-nos a única maneira
de abrigar a irmã num outro lugar, não mais dentro de si. Elena é a Ofélia que
se suicida na peça de Shakespeare, pensa Petra. E essa, é outra Ofélia. "Eu,
com muito mais consciência para sentir sua morte outra vez, sinto um imenso
prazer acompanhado da dor, me afogo em você, em Ofélias." Nota-se que
a perspectiva de Petra, em relação à morte de Elena, passa por uma
ressignificação somente a partir do momento em que a torna consciente. Esse
"prazer acompanhado da dor", para Freud, estaria totalmente
relacionado aos instintos de Eros e morte. Em suas palavras, diz: "essa
luta é o conteúdo essencial da vida, e por isso a evolução cultural pode ser
designada, brevemente, como a luta vital da espécie humana".
Se, por um lado, Elena não suporta a luta; Petra consegue atribuir um
novo sentido a essa batalha. "Enceno a nossa morte para encontrar ar,
para poder viver... As dores viram água, viram memória. Desse modo, Petra
ressignifica a morte pela última vez, através da sublimação ― processo de transformar impulsos (destrutivos e construtivos)
inconscientes em consciência, que seja benéfico e duradouro para a humanidade
―, ao elaborar o filme.
Nos momentos finais do filme, Petra
Costa diz:
"As memórias vão com o tempo, se desfazem, mais algumas encontram
consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é minha memória
inconsolável, feita de pedra e de sombra, e é dela que tudo nasce e dança".
Essa passagem nos remete diretamente
a Sigmund Freud quando aborda os meios paliativos para suportar a vida em
sociedade.
"A
vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz demasiadas dores,
decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos dispensar paliativos
(...). Existem três desses recursos, talvez: poderosas diversões, que nos
permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que
diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela. (...) As
gratificações substitutivas, tal como a arte as oferece, são ilusões face à
realidade, nem por isso são menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que
tem a fantasia na vida mental." (2011, pp. 18-19).
Observamos que Petra encontra na
arte, a sublimação, como uma forma de
alívio ao criar, produzir e atuar no filme. Dessa forma, a arte pode nos
auxiliar a compreender o funcionamento psíquico. Freud, em A questão da análise leiga (1926), abordará a importância da artes
(especificamente da literatura) para a formação psicanalítica. Entendemos,
nesse texto, a obra de arte - mais do que um objeto a ser interpretado - como
um sintoma do artista. Nota-se que o
filme produzido por Petra Costa segue no caminho que nos permite
"solicitar à criação artística as suas interpretações sobre a alma humana,
que permitiriam ver, num jogo de espelhos, a própria face da construção
psicanalítica" (KON, 2001, p. 95).
Em nossa ótica fica
claro que Petra Costa transforma seu luto num trabalho sui generis, um filme cheio de poesia e sentimento. Petra realiza
um diálogo com sua irmã morta de maneira comovente, com poderes curativos.
Também é interessante ressaltar a importância da Arte, afinal, mediante a
elaboração do filme, Petra, não só sublimou, como também atribuiu um novo
sentido à morte de Elena; e, em decorrência desse processo, deu outro sentido
para a própria vida ao se desvincular de Elena, no sentido egóico.
Não podemos nos
esquecer também que o produto da sublimação
constitui num bem cultural que ficará para a posteridade. Nas palavras de João
Alexandre Barbosa (1994:24), em "Literatura
nunca é apenas literatura" diz que essas "obras perenes, que permanecem, muitas vezes não permanecem pelos seus
significados, mas porque nós, seus pósteros, podemos descobrir nelas relações
de significantes que levam a outros significados." Elena morre em vida, enquanto Petra nasce
da morte.
[1] Todas as
vezes que aparecerem, nesse texto, citações sublinhadas estamos nos referindo
as falas do filme Elena, de Petra
Costa.
Referências
FREUD, S. (1914). A questão da análise leiga. In; Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XIII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996. p. 173-248.
FREUD, S. O
mal-estar na Civilização. Tradução de Paulo César de Souza. 1 ed. São
Paulo: Penguin: Classics Companhia das Letras, 2011.
KON, N. M. De Poe a Freud - O Gato Preto. BARTUCCI,
Giovanna (Org.). Psicanálise, literatura
e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro; Imago Ed., 2001, 91-127.
NIETZSCHE, F. W. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo;
Companhia das Letras, 1992.
SAMPAIO, C. P. A incidência da literatura na
interpretação psicanalítica. In; BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, arte e estéticas de
subjetivação. Rio de Janeiro; Imago Ed., 2002. p. 153-175.