“as mães tem mais a
ver com as guerras do que imaginam”.
O espaço ficcional de O Filho da Mãe é a Rússia à época da
segunda guerra da Tchetchênia. Encontramos no livro duas personagens cujas
histórias confluem. De um lado, Ruslan, cujo pai foi morto durante os combates
e é salvo pela avó, que se sacrifica para enviá-lo a Petersburgo, onde
trabalhará nas obras do tricentenário da cidade. De outro, Andrei, filho de uma
russa com um exilado político brasileiro e que, após o retorno do pai ao
Brasil, foi obrigado pelo padrasto a servir no Exército (no qual também presta
serviços sexuais a mando de oficiais corruptos). Ambas personagens vivem uma
situação bastante difícil, um rouba dinheiro do outro, vivem refugiados pela
noite em meio a delitos. A história de amor entre eles segue em segundo plano,
pois como eixo principal encontramos as mães que tentam proteger seus filhos.
Em
O filho da mãe, morte e fuga aparecem como soluções para determinados
conflitos. Bernardo Carvalho nos apresenta uma polifonia bastante vasta nesse
ambiente complexo, "um sujeito plural, composto por fluxos, uma máquina de
desejos". Histórias aparentemente desconectadas mostram-se interligadas
pela dor, pela perda e pelo amor materno. Parece-nos que "ao narrar
[persiste] na busca de fazer sentidos em meio à dispersão
contemporânea"
O narrador do romance tem
uma visão totalizadora, o que permite tecer comentários sobre os personagens,
tanto no aspecto físico quanto psicológicos.
“Anna não faz
ideia de quem possa ter lhe enviado uma encomenda registrada. É estranho
receber um aviso debaixo da porta. Se o tivessem deixado na caixa de correio da
portaria, como de hábito, ela nunca o teria pegado. Não recebe cartas. Não abre
envelopes. Quem a conhece sabe. É uma espécie de fobia. Há vinte anos, evita
receber notícias” (CARVALHO, 2009, p.49).
O livro se inicia com um diálogo que dá início à
história. Iúlia Stepánova descobre que está com uma doença que a levará à
morte, portanto toma a decisão de não "morrer sem salvar uma vida”. Iúlia
se dirige ao Comitê das Mães dos Soldados de São Petersburgo, uma organização
em defesa dos direitos dos soldados envolvidos na guerra. Lá encontra uma
antiga conhecida, Marina Bóndareva. Ambas se unem por conta da dor e do
sofrimento. Marina tinha um filho que cometeu suicídio com medo de retornar ao
exército após um sequestro pelas milícias da Tchethcênia; Iúlia, como já
dissemos, tem o desejo de salvar um rapaz da guerra, Vássia, filho do casal com
o qual divide o apartamento, preso ao tirar do ar um site de uma agência do
governo, depois foi incorporado ao exército e acabou parando no hospital
militar, vítima de espancamento.
Notamos que essas
personagens aparecem como uma espécie de "estrangeiro". Segundo
Denilson Lopes, "exilado dentro de si mesmo, sem retorno possível. Não há
mais lar nem o que lamentar. Não é preciso mais viajar, em todos os sentidos,
para se sentir estrangeiro. Ser estrangeiro é uma condição geral, mas não a
solidão.3 Essa questão do estrangeiro, do "sentir-se fora do lugar"
permeia o livro em vários momentos, em especial num bilhete de um rapaz que foi
morto nas montanhas ao sul de Grózni.
“Escrevo
como o louco que não pode parar de cantarolar sua ladainha sem sentido, nem que
seja para não ouvir o ruído do mundo, falar só, mais alto que o ruído do mundo.
Escrevo para o caso de você decidir voltar, para assombrar esta cidade. É a
mais artificial de todas as cidades. Em três séculos, tentaram três nomes, em
vão. Um nome por século. Construíram trezentas pontes, uma para cada ano, mas
nenhuma leva a lugar nenhum. Ninguém nunca vai sair daqui”
São Petersburgo é esse lugar que não
deixa "ninguém escapar”. é o lugar que as tramas são desenvolvidas e
entrelaçadas pela maternidade. “Não pode haver guerras sem mães [...] Você é
capaz de matar por um filho. E acaba recebendo o troco na mesma moeda quando a
guerra o leva [...] Sem querer ver é daí que nascem as guerras”.
Stuart Hall, em “As culturas
nacionais como comunidades imaginadas”, aborda, como o próprio título diz, a
questão da "nação" como "comunidade imaginada".
"Uma
cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós
mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre "a nação",
sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem
identidades."
A questão da identidade é muito
relevante para nós. Notamos que as personagens marcam uma identidade, assim
como os soldados também possuem as deles. “Sonhara que representava o que não
podia caber no sonho [...] O que podia existir em qualquer lugar, menos no meu
próprio sonho. Por isso, tive que acordar rápido, para não desaparecer”. A
tensão entre países deixa de ser apenas política, sendo espelhadas nas próprias
relações sociais.
"Qualquer
tchetcheno a quem se fizer a pergunta dirá que não há homossexuais na Tchetchênia.
E talvez por isso Ruslan e Akif não tenham sido vistos durante os meses em que
se encontraram nas ruínas do prédio da escola de medicina. Porque eram
invisíveis."
Dessa forma é apresentado Ruslan, rejeitado pela mãe e
tendo o pai morto na guerra, consegue sair do campo de refugiados na Inguchétia
com o auxílio da avó. Na tentativa de encontrar um lugar "seu" segue
para São Petersburgo. Andrei, filho de brasileiro exilado político com uma
russa, é obrigado a servir o exército. O encontro dos dois acontece quando
Ruslan rouba Andrei, “o dinheiro da prostituição para o sustento do exército
russo.” O narrador anuncia que “os dois só podem existir no limite da
inverossimilhança.” Nasce uma história de amor, representa-se uma relação
amorosa que foge da normativa social, um romance heterossexual.
“É possível que não se
dê conta de que terminou por associar o sexo às ruínas ao risco, à força de
tê-lo descoberto em meio a uma guerra, e de buscá-las, as ruínas, sempre que
encontra alguém, por ter sido obrigado a reconhecer nelas o cenário
reconfortante do lar onde já não há possibilidade de reconforto. Quando não há
mais nada, há ainda o sexo e a guerra [...] A ideia de uma vulnerabilidade
maior que a sua lhe desperta o amor.”
Nesse ambiente híbrido e polifônico, o romance equaciona
história e ficção na busca de uma escrita capaz de retratar a pluralidade das
relações sociais, políticas e econômicas. Dentre as características do romance
contemporâneo, notamos que Bernardo Carvalho elenca espaço, identidade, memória
como eixos de sua narrativa. A história de Ruslan e Andrei representam
identidades do período contemporâneo. Ambos recorrem a rememoração e lutam pela
sobrevivência. Recomendo fortemente a leitura!
CARVALHO, Bernardo. O
filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Hall, Stuart. “As culturas
nacionais como comunidades imaginadas”. In: A identidade cultural na
pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
Lopes, Denilson. “A viagem
e uma viagem”. In: O homem que amava rapazes. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2002.
Belíssimo texto, Thaysa. Engraçado como cada leitura é diferente, você acabou ressaltando aspectos que passaram despercebidos nas minhas leituras deste livro que é tão especial para mim...
ResponderExcluirPoxa, Carlos! Que surpresa (:
ResponderExcluirNossa, fiquei curiosa pra saber quais foram os pontos que você ressaltou.
Sem dúvidas esse é um livro muito especial e profundo!
Eu amei essa leitura! Que livro bom!!!
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