sábado, 22 de fevereiro de 2014

O filho da mãe, de Bernardo Carvalho (algumas impressões de leitura)

“as mães tem mais a ver com as guerras do que imaginam”.

            O espaço ficcional de O Filho da Mãe é a Rússia à época da segunda guerra da Tchetchênia. Encontramos no livro duas personagens cujas histórias confluem. De um lado, Ruslan, cujo pai foi morto durante os combates e é salvo pela avó, que se sacrifica para enviá-lo a Petersburgo, onde trabalhará nas obras do tricentenário da cidade. De outro, Andrei, filho de uma russa com um exilado político brasileiro e que, após o retorno do pai ao Brasil, foi obrigado pelo padrasto a servir no Exército (no qual também presta serviços sexuais a mando de oficiais corruptos). Ambas personagens vivem uma situação bastante difícil, um rouba dinheiro do outro, vivem refugiados pela noite em meio a delitos. A história de amor entre eles segue em segundo plano, pois como eixo principal encontramos as mães que tentam proteger seus filhos.
           
           Em O filho da mãe, morte e fuga aparecem como soluções para determinados conflitos. Bernardo Carvalho nos apresenta uma polifonia bastante vasta nesse ambiente complexo, "um sujeito plural, composto por fluxos, uma máquina de desejos". Histórias aparentemente desconectadas mostram-se interligadas pela dor, pela perda e pelo amor materno. Parece-nos que "ao narrar [persiste] na busca de fazer sentidos em meio à dispersão contemporânea" 
           
          O narrador do romance tem uma visão totalizadora, o que permite tecer comentários sobre os personagens, tanto no aspecto físico quanto psicológicos.

“Anna não faz ideia de quem possa ter lhe enviado uma encomenda registrada. É estranho receber um aviso debaixo da porta. Se o tivessem deixado na caixa de correio da portaria, como de hábito, ela nunca o teria pegado. Não recebe cartas. Não abre envelopes. Quem a conhece sabe. É uma espécie de fobia. Há vinte anos, evita receber notícias” (CARVALHO, 2009, p.49).
            O livro se inicia com um diálogo que dá início à história. Iúlia Stepánova descobre que está com uma doença que a levará à morte, portanto toma a decisão de não "morrer sem salvar uma vida”. Iúlia se dirige ao Comitê das Mães dos Soldados de São Petersburgo, uma organização em defesa dos direitos dos soldados envolvidos na guerra. Lá encontra uma antiga conhecida, Marina Bóndareva. Ambas se unem por conta da dor e do sofrimento. Marina tinha um filho que cometeu suicídio com medo de retornar ao exército após um sequestro pelas milícias da Tchethcênia; Iúlia, como já dissemos, tem o desejo de salvar um rapaz da guerra, Vássia, filho do casal com o qual divide o apartamento, preso ao tirar do ar um site de uma agência do governo, depois foi incorporado ao exército e acabou parando no hospital militar, vítima de espancamento.
           Notamos que essas personagens aparecem como uma espécie de "estrangeiro". Segundo Denilson Lopes, "exilado dentro de si mesmo, sem retorno possível. Não há mais lar nem o que lamentar. Não é preciso mais viajar, em todos os sentidos, para se sentir estrangeiro. Ser estrangeiro é uma condição geral, mas não a solidão.3 Essa questão do estrangeiro, do "sentir-se fora do lugar" permeia o livro em vários momentos, em especial num bilhete de um rapaz que foi morto nas montanhas ao sul de Grózni.

“Escrevo como o louco que não pode parar de cantarolar sua ladainha sem sentido, nem que seja para não ouvir o ruído do mundo, falar só, mais alto que o ruído do mundo. Escrevo para o caso de você decidir voltar, para assombrar esta cidade. É a mais artificial de todas as cidades. Em três séculos, tentaram três nomes, em vão. Um nome por século. Construíram trezentas pontes, uma para cada ano, mas nenhuma leva a lugar nenhum. Ninguém nunca vai sair daqui”
           
           São Petersburgo é esse lugar que não deixa "ninguém escapar”. é o lugar que as tramas são desenvolvidas e entrelaçadas pela maternidade. “Não pode haver guerras sem mães [...] Você é capaz de matar por um filho. E acaba recebendo o troco na mesma moeda quando a guerra o leva [...] Sem querer ver é daí que nascem as guerras”.
       
            Stuart Hall, em “As culturas nacionais como comunidades imaginadas”, aborda, como o próprio título diz, a questão da "nação" como "comunidade imaginada".

"Uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre "a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades."

            A questão da identidade é muito relevante para nós. Notamos que as personagens marcam uma identidade, assim como os soldados também possuem as deles. “Sonhara que representava o que não podia caber no sonho [...] O que podia existir em qualquer lugar, menos no meu próprio sonho. Por isso, tive que acordar rápido, para não desaparecer”. A tensão entre países deixa de ser apenas política, sendo espelhadas nas próprias relações sociais.
"Qualquer tchetcheno a quem se fizer a pergunta dirá que não há homossexuais na Tchetchênia. E talvez por isso Ruslan e Akif não tenham sido vistos durante os meses em que se encontraram nas ruínas do prédio da escola de medicina. Porque eram invisíveis."
            Dessa forma é apresentado Ruslan, rejeitado pela mãe e tendo o pai morto na guerra, consegue sair do campo de refugiados na Inguchétia com o auxílio da avó. Na tentativa de encontrar um lugar "seu" segue para São Petersburgo. Andrei, filho de brasileiro exilado político com uma russa, é obrigado a servir o exército. O encontro dos dois acontece quando Ruslan rouba Andrei, “o dinheiro da prostituição para o sustento do exército russo.” O narrador anuncia que “os dois só podem existir no limite da inverossimilhança.” Nasce uma história de amor, representa-se uma relação amorosa que foge da normativa social, um romance heterossexual.
“É possível que não se dê conta de que terminou por associar o sexo às ruínas ao risco, à força de tê-lo descoberto em meio a uma guerra, e de buscá-las, as ruínas, sempre que encontra alguém, por ter sido obrigado a reconhecer nelas o cenário reconfortante do lar onde já não há possibilidade de reconforto. Quando não há mais nada, há ainda o sexo e a guerra [...] A ideia de uma vulnerabilidade maior que a sua lhe desperta o amor.”
            Nesse ambiente híbrido e polifônico, o romance equaciona história e ficção na busca de uma escrita capaz de retratar a pluralidade das relações sociais, políticas e econômicas. Dentre as características do romance contemporâneo, notamos que Bernardo Carvalho elenca espaço, identidade, memória como eixos de sua narrativa. A história de Ruslan e Andrei representam identidades do período contemporâneo. Ambos recorrem a rememoração e lutam pela sobrevivência. Recomendo fortemente a leitura!



CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Hall, Stuart. “As culturas nacionais como comunidades imaginadas”. In: A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
Lopes, Denilson. “A viagem e uma viagem”. In: O homem que amava rapazes. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

3 comentários:

  1. Belíssimo texto, Thaysa. Engraçado como cada leitura é diferente, você acabou ressaltando aspectos que passaram despercebidos nas minhas leituras deste livro que é tão especial para mim...

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  2. Poxa, Carlos! Que surpresa (:
    Nossa, fiquei curiosa pra saber quais foram os pontos que você ressaltou.
    Sem dúvidas esse é um livro muito especial e profundo!

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  3. Eu amei essa leitura! Que livro bom!!!

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