domingo, 7 de setembro de 2014

Como ler Kafka?

Grande parte dos autores e críticos do século XX fizeram, em algum momento, referências à emblemática figura de Franz Kafka e à sua obra. Nascido na cidade de Praga a 3 de julho de 1883, Kafka cresceu e teve sua formação intelectual marcada pela presença de três culturas, como reflexo da própria constituição do então Império Austro-húngaro: judia, tcheca e alemã.
O pensamento de Franz Kafka foge a qualquer esforço de interpretação que busque enquadrá-lo em esquemas teóricos rígidos e dogmáticos. Desde a publicação de suas obras, em vida e postumamente, exegetas das mais diversas tendências teóricas buscam filiar os escritos de Kafka aos seus respectivos credos e doutrinas. Parece-nos que para cada uma das interpretações fornecidas – frequentemente discordantes – exista na obra de Kafka a possibilidade de encontrar uma parte de verdade. No entanto, a obra em seu conjunto não permite a adoção de interpretações facciosas a partir de leituras fragmentárias. O objetivo do presente trabalho é justamente mapear algumas das principais correntes interpretativas a partir de uma leitura detalhada do ensaio “Anotações sobre Kafka”, de autoria de Theodor Adorno. Concomitantemente ao mapeamento dessas múltiplas correntes de pensamento sobre Kafka, buscaremos lançar luz sobre algumas concepções desenvolvidas por Adorno em torno da produção kafkiana. Num segundo momento, nosso trabalho focará a leitura de Kafka feita pelo filósofo alemão Walter Benjamin, a partir da “Carta da Gershom Scholem”. Por fim, destacaremos alguns pontos dos vivos debates mantidos entre Adorno e Benjamin – que, aliás, mantinham inúmeras afinidades teórico-filosóficas, particularmente nas leituras que fizeram de Kafka, que se influenciaram reciprocamente –, fartamente recuperados a partir da leitura da correspondência mantida entre ambos os pensadores.
I - O conforto no desconfortável
Uma primeira observação pertinente, baseada numa passagem da primeira parte das “Anotações sobre Kafka”, diz respeito a um certo reducionismo analítico operado por leituras dogmáticas de Kafka. Devem ser descartadas, portanto, interpretações que tenham por objetivo conferir à sua obra um sentido coerente ou uma formulação sistemática. De acordo com Adorno, a operação intelectual por meio da qual os textos kafkianos são convertidos em escritórios de informações sobre a condição eterna ou atual do homem – o que empresta à sua obra um tom filosófico ou de mensagem espiritual a ser apreendida pelas antigas e novas gerações – tem por consequência (ou talvez possamos falar mesmo em intencionalidade implícita) neutralizar precisamente o teor de escândalo pretendido pelo próprio Kafka. Não são, vale lembrar, autênticas interpretações, mas antes projeções feitas a partir da obra. Constituem, assim, meras especulações. Adorno não parece menosprezar a sugestividade e, até mesmo, a riqueza de conteúdo de tais leituras. Contudo, somos levados a perceber que tais juízos dizem mais sobre aqueles de quem partem do que do próprio Kafka. Ter-se-ia, assim, um filósofo do existencialismo. Alternativamente, Adorno propõe ao leitor o caminho analítico que dificulta o enquadramento, e que por isso mesmo exige a interpretação minuciosa. A análise feita por Adorno prima por uma compreensão literal de Kafka. Segundo suas palavras,
Para se prevenir contra o curto-circuito causado pelo sentido prematuro já visado pela obra, a primeira regra é tomar tudo literalmente, sem recobrir a obra com conceitos a partir de cima. A autoridade de Kafka é a dos textos.” (grifos nossos) (p.242)
Pode-se seguramente afirmar que Adorno extrapola – e muito! – os limites de uma leitura convencional, possivelmente apressada e, portanto, fragmentária do legado de Kafka. De acordo com as palavras do próprio Adorno:
As criações de Kafka se protegem do erro artístico mortal que consiste em crer que a filosofia que o autor injeta na obra seja o seu teor metafísico. Se fosse assim, a obra teria nascido morta: ela se esgotaria naquilo que diz e não se desdobraria no tempo. (grifo nosso) p.242
Adorno prima por um esforço de compreensão que admita inclusive a dúvida de que o próprio Kafka tenha compreendido adequadamente sua obra. Ao longo de suas “Anotações”, Adorno deixa claro que Kafka não foi meramente um literato ou mesmo um gênio que tenha se dedicado a construir para si próprio um domínio de formulações fixas, imutáveis. Foi, acima de tudo, um poeta, um criador, ambas significações possíveis encerradas sob o vocábulo alemão Dichter.  
II - Max Brod e o “caminho da santidade”  
Durante sua vida, Franz Kafka publicou apenas algumas histórias curtas. Não foi, portanto, um autor notório em sua época. Um dos últimos desejos manifestos por ele ao seu amigo e testamenteiro Max Brod foi a destruição de todos os seus manuscritos. Brod, contudo, não se preocupou em atender à solicitação de Kafka; ao contrário, supervisionou a publicação de parte significativa das obras que estavam em seu poder. Os elogios recebidos por parte dos críticos determinaram uma divulgação relativamente ampla dos escritos kafkianos durante os anos vinte, inicialmente na Áustria e na Alemanha (vale lembrar que o grosso de sua produção literária foi redigido em língua alemã). Na década de 30, parte da obra de Kafka foi traduzida para outros idiomas, espraiando-se em edições na França, Inglaterra e até mesmo Estados Unidos.
Como anteriormente indicado, os escritos de Kafka são objeto de apreciações radicalmente díspares. Theodor Adorno e Walter Benjamin dedicam muitas linhas à problemática das interpretações de Kafka lançadas por aquele que pode com justiça ser visto como o primeiro dos intérpretes: Max Brod. Ambos os autores adotam uma postura nitidamente crítica em relação ao conceito de “santidade”, amplamente utilizado por Brod na caracterização da vida e obra de Kafka em seu Franz Kafka. Eine Biographie, publicado em Praga no ano de 1937. A título da análise da referida obra, Walter Benjamin redige uma carta relativamente extensa a Gershom Scholem. Nela Benjamin defende que a biografia escrita por Brod tem por característica central uma contradição entre a tese e a postura do autor. Segundo Benjamin, o livro de Brod defende a ideia de que Kafka estava “no caminho da santidade”. Isso é feito por meio de reiteradas demonstrações de uma “intimidade ostentatória” do autor com o seu objeto de estudo. Falta a Brod, no dizer de Benjamin, “qualquer sensibilidade pelo rigor pragmático” que deveria estar presente numa primeira biografia de Kafka. Por outro lado, Benjamin demonstra que Brod faz tábula rasa das potenciais leituras de Kafka pelo viés do surrealismo e desqualifica, inclusive, a futura literatura sobre temas kafkianos. Da leitura da Biographie resulta um excessivo peso conferido aos aspectos do judaísmo e, mais especificamente, do sionismo na obra de Kafka.       
III - Entre a tradição mística e a modernidade
Ainda em sua “Carta a Gershom Sholem”, Benjamin expõe uma apreciação geral da obra de Kafka. De acordo com a sua concepção, há em Kafka dois focos: um definido pela experiência da tradição mística e outro pela experiência do habitante moderno da cidade grande. Sob este segundo foco repousa, como indica o próprio Benjamin, uma vasta gama de situações e significações. Por um lado, se tem em mente o cidadão das modernas cidades, que se vê submetido a um aparelho burocrático impenetrável, marcado pela imprecisão de suas instâncias.
Através da leitura de algumas obras de Kafka é possível constatar as afirmações feitas por Benjamin. Na obra Na colônia penal, Franz Kafka apresenta uma novela na qual um observador estrangeiro assiste aos preparativos de um ritual de tortura e execução. Além do observador e do condenado também encontra-se presente um soldado e o encarregado de ministrar a "justiça", justiça essa que conta com o auxílio de uma máquina concebida para que cada condenado sinta na pele a especificidade da sentença que está submetido.
Segundo Modesto Carone, no comentário às obras O veredicto e Na colônia Penal (1998), a novela Na colônia penal foi redigida quando Kafka estava de férias, em outubro de 1914 (seu período mais produtivo).
para ele as relações com objetos, acontecimentos e pessoas só fossem visíveis nos hieroglifos da dor e do medo. São também desse período anotações sombrias dos Diários, em que aparecem fantasias de castigos com aparelhos de tortura, nos quais o autor se autoexecuta. Vale ainda a pena lembrar que nesse mesmo ano estourou a Primeira Guerra Mundial. (p. 77)
            Outra obra de Kafka, O Processo,  nos parece interessante para a reflexão. O drama que tem como protagonista Josef K, personagem que numa manhã qualquer é preso e fica sujeito a um complexo e incompreensível processo de um crime não revelado. Ao leitor se apresenta uma narrativa imersa numa atmosfera desorientada, esse ambiente cheio de surpresas surreais se coloca em conformidade com os parâmetros da sociedade moderna.
            Kafka vai descrevendo um mundo no qual os meios dominaram os fins e a humanidade se perde. Max Brod em uma conversa com Kafka chega a dizer
Lembro-me de uma conversa com Kafka, cujo ponto de partida era a Europa atual e a decadência da humanidade. “Somos – disse ele – pensamos niilistas, pensamentos de suicídio que afloram na mente de Deus. Isto em princípio me fez pensar na visão do mundo da gnose: Deus como um demiurgo maligno e o mundo como seu pecado original. “Ó não – disse -, nosso mundo é só um mau humor de Deus, um mau dia”. “Fora desta manifestação, deste mundo que conhecemos, haveria então esperança?” Sorriu. “Sem dúvida, muita esperança, infinita esperança, porém não para nós.
            Notamos que Kafka possui, portanto, enorme sensibilidade de captar o absurdo, o grotesco e o trágico no cotidiano do homem moderno. Maurício Tragtenberg em seu artigo “Kafka: romancista do absurdo” fala sobre essa "incomunicabilidade” na obra kafkiana. A ausência de comunicação entre os homens, mas principalmente entre o “homem comum” e a administração.
IV - O elemento visual em Kafka
O outro ponto relativo à experiência do habitante moderno da cidade grande diz respeito, na ótica de Benjamin, a uma concepção física do espaço, pautada por uma visão científica do mundo. A título de exemplo, o autor transcreve um trecho da “Imagem do mundo oferecida pela física”, de Eddington. Este aspecto liga-se claramente a algumas observações de Theodor Adorno em suas “Anotações” acerca da marcante presença do elemento visual em Kafka. A tarefa de narrar o visível em Kafka prioriza a questão do gesto.   
Theodor Adorno remete a fala de um “moderno pré-epocal” e é aí que ele encontra uma explicação para a questão da gestualidade em Kafka. Para Adorno isso o remeteria ao retorno do arcaico em meio à moderna atrofia da linguagem. Por outro lado Walter Benjamin retoma a figura do teatro para tratar da gestualidade.
Uma das funções mais significativas desse teatro é a dissolução do acontecimento no gesto. Podemos ir mais longe e dizer que muitos estudos e contos menores de Kafka só aparecem em sua verdadeira luz quando transformados, por assim dizer, em peças representadas no teatro ao ar livre de Oklahoma. Somente então se perceberá claramente que toda a obra de Kafka representa um código de gestos, cuja significação simbólica não é de modo algum evidente, desde o início, para o próprio autor; eles só recebem essa significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências. (grifo nosso) (1985, p. 146)
            Vê-se, por exemplo, que em O Processo encontramos muitos gestos e ações que ocorrem sem explicação ou lógica aparente. Esses elementos gestuais nos remetem à dominação do indivíduo pelas entidades que ele mesmo cria: a alienação resultante da racionalização. Benjamin afirma que “só pelo gesto podia Kafka fixar alguma coisa” (1985, p. 154).

Considerações finais

            Ao longo do nosso trabalho buscamos apresentar alguns pontos centrais da obra Kafkiana tendo como base os textos de Theodor Adorno, Walter Benjamin e do próprio Franz Kafka. Na tentativa de mapear algumas das várias correntes interpretativas da obra de Kafka constatamos que ao leitor seria interessante, seguindo as análises de Adorno, primar pela leitura literal de sua obra. Theodor Adorno ainda faz uma ressalva e nos leva a considerar que nem mesmo o próprio Kafka talvez tivesse compreensão de sua obra.
            Ao contrário do que vemos hoje, Kafka não teve grande repercussão em sua época. Max Brod, que escreveu uma biografia de Kafka é alvo de muitas críticas por declarar que Kafka estava "no caminho da santidade". Theodor Adorno e Walter Benjamin apontam que existem diversos problemas em sua interpretação, apontando contradições.
            Em seguida vimos que a obra de Kafka possui relações estreitas com a tradição mística e a modernidade. A obra O Processo, por exemplo, é uma das que nos apresenta relações com o mundo moderno e outras temáticas presentes na obra kafkiana. Além disso, contata-se a importância da gestualidade, a presença de ambientes surreais, atrocidades, reflexões incomparáveis no maior estilo prosador de ficção que a literatura já conheceu.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. 1998:“Anotações sobre Kafka” e “Caracterização de Walter Benjamin”. In: Prismas. Tradução de Augustin Wernet e Jorge Mattos Britos de Almeida. São Paulo: Ática.
BENJAMIN, Walter. "Franz Kafka. A Propósito dos 10 Anos da Sua Morte". Magia e Técnica, Arte e Política. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
KAFKA, Franz. O veredicto / Na colônia Penal. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
_____________. O processo. São Paulo: Martin Claret, 2003.
TRAGTENBERG, Maurício. "O romancista do 'absurdo'" In: Separata da Revista ALFA, n° 1. Departamento de Letras da FFCL de Marília. Maio de 2001.

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