segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Autobiografia Sumária de Adília Lopes

Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
(LOPES, 2002 em Antologia. P.71)



            Antes de iniciar a minha tentativa de “análise” do poema “Autobiografia Sumária de Adília Lopes” – da poetisa contemporânea que é o pseudônimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira – gostaria de dizer que quando estudei essa poetisa logo me apaixonei pela sua poesia. Depois que li alguns textos e fui adentrando o seu mundo literário, então... nem se fala!

            Dotada de um estilo muito peculiar, Adília utiliza diversos elementos narrativos em seus poemas, ora predominando nas repetições, ora infantilizando-os – como é o caso do uso do verbo “brincar” neste poema. Também é constante o uso de figuras animalescas, como neste caso – gatos e baratas. 

            Logo no primeiro verso Adília diz: “Os meus gatos”. Ou seja, não é qualquer gato, é o gato dela. Sabendo que o gato é um animal com certa simbologia, que ora oscila entre tendências maléficas e benéficas, em diferentes culturas, há certo mistério que se insere na figura do gato, e que pode ser facilmente relacionado à figura de Adília, que ao mesmo tempo é Maria José. Portanto, não à toa que tal figura está em sua “Autobiografia”.

            A barata, por sua vez, é a segunda figura animalesca que aparece no último verso do poema de Adília: “com as minhas baratas”. Esta representará aquilo que está à margem, a hipocrisia social ou a solidão. Como sabemos, para a produção de um artista a solidão é indispensável para sua reflexão e criação artística.

            É possível identificarmos que Adília une dois extremos, a barata – que naturalmente não é vista com bons olhos pelas pessoas, por ser relacionada à sujeira –, e o gato – facilmente cultivado como animal de estimação por grande parte das pessoas. Por esta simples metáfora, a poetisa nos transmite a idéia de que o ocultismo do gato e a solidão da barata acabam se completando, assim como as pessoas são constituídas por pólos diferentes, como Maria José e Adília, que são uma só. 

            Neste sentido começamos a perceber que há uma luta contra um discurso do senso comum, onde as pessoas podem viver sem seguir um padrão que limita as vontades próprias. O apreço por animais tidos pelo senso comum como repugnantes e indignos de admiração – como é o caso da barata – faz parte do esforço em fugir das convenções sociais e psicológicas vigentes.

            Enfim, percebe-se que Adília Lopes, mesmo com sua escrita aparentemente simples, é capaz de fazer uma profunda análise da vida cotidiana do ser humano, da qual fazem parte diversos elementos – inclusive baratas. Através dos seus escritos, Adília faz suas denúncias, desenvolve suas descrições alternativas e se distancia da crueldade legitimada de tantas formas. Fugindo dos padrões, utilizando uma sintaxe quase que incompatível com a escrita poética, utiliza os animais como muito mais do que simples substantivos.         

         "Por um lado, os bichos – e eu gosto muito de bichos – serão queridas baratas. Mas não há rostos baratos. Não há caras caras e caras baratas. Vivemos num momento em que as pessoas fazem muitas operações plásticas ou gastam muito dinheiro com a aparência e eu acho isso um logro.” 

            Diante desta nossa última citação fica claro que Adília Lopes se utiliza da arte como forma de elaborar severas críticas à sociedade que lhe é contemporânea. Desse seu esforço crítico, nos é legada uma rica fonte de reflexões – inclusive sobre a linguagem.



A poesia  deve ser apresentada como
uma   forma   de   refletir   e   repensar 
o seu vocabulário final


 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Uma Prova de Amor


         
"Mãe lembra quando eu fui para um acampamento de férias?
Eu estava morrendo de medo de não ver mais vocês,
e você me disse pra sentar do lado esquerdo para
que eu pudesse ver vocês?
Então, estarei neste mesmo assento."

         Ultimamente tenho assistindo um filme mais emocionante do que o outro. Poderia pensar que é por estar vivendo longe do meu país, da minha família e dos meus amigos, mas não! Por mais sentimental que eu seja/esteja o filme que assisti ontem foi um dos mais belos que assisti nos últimos anos. 
             “Uma Prova de Amor” retrata o drama de Kate – uma jovem menina que tem leucemia. Sara e Brian – seus pais – fazem de tudo para que o quadro da doença seja revertido. Quando se veem sem possibilidades são aconselhados por um médico a fazer uma fertilização in vitro para que a criança gerada seja doadora de Kate. Os pais concordam e nasce Anna que desde bebê passa a doar sangue, células tronco do cordão umbilical, e faz tudo o que é preciso para prolongar a vida de Kate.  Aos 11 anos de idade Anna precisa doar um rim para sua irmã, cansada dos procedimentos médicos a garota decide enfrentar os pais dizendo que ela deve decidir o que fazer com o seu corpo, e então, contrata um advogado para defendê-la. Sara não se conforma com a ação judicial, e como estava acostumada a ganhar todos os casos quando exercia a advocacia, decide a todo custo manter Kate viva. Há ainda o irmão Jesse, que se vê cada vez mais ignorado pelos pais e apoia sua irmã – Anna.
                O filme é narrado por seus vários “protagonistas”, desde a própria Anna até a Kate – que em sua situação de dor e sofrimento – demonstra uma maturidade incrível ao lidar com as mais variadas situações. Kate – que passa por essas circustâncias quase toda a vida – consegue enxergá-la de uma maneira muito profunda – se diverte quando é possível, chora e fica triste como todo ser humano, namora e ama. Enquanto isso – no tribunal – Anna não só sensibiliza a juíza que havia perdido uma filha fazia poucos meses, como se coloca em frente a mãe e argumenta sobre o seu direito de decidir se irá ou não doar o rim para Kate.  Jesse invade a sessão – e mesmo com Anna implorando para que ele não dissesse nada –  relata que todo o processo foi aberto porque Kate queria morrer desde o início, e que só os dois irmãos a ouviam.
                 O momento de fortissima emoção é quando todos vão até o hospital onde Kate está internada. Ela se despede da família dizendo que os ama e deixa um álbum de fotos com sua mãe a  pessoa que luta o tempo todo pela sua vida , sendo a verdadeira prova de amor de uma mãe que sofre ao ver sua filha doente e impossibilitada de fazer algo. A jovem bastante debilitada vai a óbito naquele mesmo dia. Sara compreende que somente ela não queria ouvir o que Kate dizia. Por que ela não queria ouvir? Eram palavras duras demais? Sim! Nenhuma mãe quer se conformar em perder uma filha, isso é claro! Mas será que ouvir e procurar refletir sobre aquilo que foi dito não é a melhor maneira de encontrar um alívio para prossseguir a vida e lidar com a situação? Seja lutando, seja conformando-se, seja vivendo… Seja observando que a morte nos ensina sobre a transitoriedade de todas as coisas...


domingo, 28 de outubro de 2012

A Cor do Paraíso


O paraíso pode estar bem ali, no meio do inferno - basta querer vê-lo

Primeiramente, digo que não sou uma pessoa muitíssimo antenada em filmes – não por falta de interesse, mas por falta de acesso (em alguns casos) e falta de tempo também. Mas nos últimos tempos  assisti alguns filmes e confesso que estou me tornando fã dos filmes iranianos. "A Cor do Paraíso" (1999), de Majid Majidi é o filme da vez! 
A película ganhou alguns prêmios em Festivais (Gijón, San Diego, Giffoni) e acho que merecia ganhar muito mais. É impressionante como um cinema tão vitimado pela censura, pela perseguição, pelas restrições políticas e religiosas consegue fazer filmes tão bons, tão humanos, tão doces e, ao mesmo tempo, atrozes – mostrando o lado “cruel” (e real) de tantas pessoas. 
O filme narra uma história demasiadamente tocante (e genialmente bem representada, em particular pelo protagonista). Mohammad é um menino que vive numa escola para deficientes visuais, em Teerã. No período de férias todas as crianças voltam para os seus lares, mas no caso de Mohammad há um problema. O seu pai – homem sofrido e magoado - não quer saber dele, mas como não tem saída, acaba levando o menino para a região montanhosa onde vive com sua mãe e duas filhas - irmãs de Mohammad.
O menino é apaixonado pelo lugar – inclusive porque lá ele pode ficar perto de sua avó, uma senhora doce e forte que o compreende em todos os sentidos. O pai sempre muito distante pensa em levá-lo para ser aprendiz de um marceneiro que também é cego. Sem pensar que o menino pode levar uma vida mais digna e feliz perto de sua família, o pai se mostra egoísta e faz sua escolha. 
A avó de Mohammad fica inconformada com a situação, o ambiente se torna triste e pálido. O pai percebe que sua vida se transformara num verdadeiro caos e decide buscar o garoto. No caminho de volta – na travessia de uma ponte que se quebra – o menino se desequilibra e cai dentro de um rio de forte correnteza. Por alguns instantes Hashem fica pensativo, mas nesse instante o seu lado humano fala mais alto, e ele pula atrás do filho na tentativa de salvá-lo. Ambos acabam um uma praia e quando o pai em desespero pega o filho inerte no colo, a ação do filme se encerra para que possamos refletir e interpretar com extrema poesia e delicadeza o final desse belíssimo filme.
Assistam!

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Festa no Covil – Juan Pablo Villalobos


O Youcalt é meu pai, mas ele não gosta que eu chame ele de pai. Diz que
 somos o melhor bando de machos num raio de pelo menos oito quilômetros. O 
Youcalt é dos realistas, e por isso não diz que somos o melhor bando do 
universo nem o melhor bando num raio de oito mil quilômetros. Os realistas são
 as pessoas que acham que a realidade não é assim, como você pensa que
 é. Foi o Youcalt que me falou. A realidade é assim, e pronto. Sem chance.
 ‘É preciso ser realista’ é a frase favorita dos realistas”. (Festa no Covil)


         Festa no Covil, do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, adentra o cânone da narcoliteratura em grande estilo. A voz – fininha como de uma criança – que surge nas linhas deste livro, descreve a cruel e violenta realidade do tráfico de drogas no México através da ótica do inteligentíssimo Tochtli. Vivendo como um príncipe isolado do mundo real, o menino-narrador nos surpreende em vários sentidos! A narrativa ingênua do menino – filho de um traficante – demonstra que seu mundo foi construído através das conversas com os empregados do “palácio” ou pela televisão. Seu passatempo é desvendar mistérios, colecionar chapéus, pesquisar palavras difíceis, saber mais sobre samurais, reis, animais em extinção e outros assuntos. Nesta árdua tarefa ele é auxiliado por um fracassado escritor que não mede as palavras diante do seu amiguinho.
              Tochtli também deseja ganhar um hipopótamo anão da Libéria. E por mais surreal que possa parecer, o pequeno garotinho pode conseguir um hipopótamo desse para completar o seu pequeno zoológico que fica no “quintal” do seu “palácio”. Esse sonho poderá ser realizado quando a família precisa abandonar o México por conta da perigosa situação de seu pai – que o proíbe de lhe chamar de “pai”. Então, inicia-se o safári para captura do tal hipopótamo. Numa viagem à África cheia de aventuras e percalços revela-se um quadro cômico e assustador; o coração do crime para além do bem e do mal.
            “Festa no Covil concentra em suas poucas páginas um panorama impactante e sem moralismos da violência do narcotráfico em meio a outras violências, pelos olhos límpidos e pela voz surpreendente de uma criança à beira do abismo de seu destino”.
Recomendo a leitura!



domingo, 5 de agosto de 2012

Como Estrelas na Terra


“No mundo, há essas pequenas pedras preciosas,
que desafiaram os caminhos do mundo, pois podiam
olhá-lo com olhos diferentes. Seu pensamento era
distinto e nem todos os entendiam. Eles enfrentaram
oposi
ç
ão e, ainda assim, venceram, e o mundo ficou maravilhado”.

            Assistir “Como Estrelas na Terra” foi muito emocionante! Além de ser um filme muito especial, dialoga com o conto que escrevi há pouco tempo, “A dona Perfeição” – que feliz coincidência!
            O filme retrata a história de um garoto com dislexia. Ishaan é uma criança que vive cercada de pessoas incapazes de compreender sua diferença. A falta de trato de sua família, a incompreensão dos professores rigorosos do colégio, e a falta de cuidado das crianças que o rodeiam produzem crescentes barreiras nas relações de Ishaan com o mundo.
            As músicas que perpassam as cenas do maravilhoso filme indiano são parte importantíssima na construção da história; aliadas às imagens do protagonista, traduzem sua visão de mundo e a percepção que constrói dos fatos – o que revela a absoluta impossibilidade de redução das múltiplas facetas de sua existência à realidade da dislexia.
        Primeiro, observamos por parte da família de Ishaan a tentativa de se moldar a uma vida demasiadamente regrada.  Toda sua família vive se adaptando a horários, compromissos, e se esquece de viver as coisas belas da vida! Na escola, as crianças são privadas da liberdade, os alunos devem apenas escutar, obedecer e seguir regras de organização. Para Ishaan as coisas não fazem sentido – “Seus olhos berram por socorro” -, os questionamentos são tantos que o nervosismo toma conta de seu corpo. O menino passa a se comportar mal na tentativa de fugir das situações.
            Todas essas ocasiões desagradáveis fazem com que seu pai se torne agressivo e pense que ele é um menino desrespeitoso, preguiçoso e desatento. Ao invés de ter o apoio da família, Ishaan vai aos poucos se isolando de tudo e de todos. O que fazer para Ishaan reagir? O pensamento egoísta de seus pais leva-o a um colégio interno. O pobre garoto inicia seus pesadelos na solidão daquele lugar.
            Neste momento aquele velho ditado de que “a mãe sempre sabe o que é melhor para o filho” é desconstruído. Sua mãe – muito passiva – não é capaz de enfrentar o pai e entender o que se passa com Ishaan. O garoto acaba por sofrer as consequências! Naquele colégio o que deve reinar é a disciplina. As crianças devem agradar aos seus professores, isso basta! Longe de todos que ama, torna-se um menino apático, sem vontade de interagir, sem curiosidade, sem alegria; Inicia-se um processo de autodestruição.
            Então, surge um professor de Educação artística, Nikumb. É uma pessoa sensível cheia de visões “humanizadoras” em relação ao ensino. No início, é um professor muito criticado por todos os outros membros docentes do colégio que preparam os seus alunos para a “batalha da vida”. Iniciamos reflexões acerca do real papel do educador. Como podemos admitir que adaptar as crianças a um mundo competitivo e alienante pode ser a função de um professor?
            Nikumb inicia uma investigação para descobrir qual é o real problema de Ishaan. Analisa os seus cadernos, conversa com o seu único colega e percebe que existe algo diferente – mas especial – naquele garotinho tristonho. O professor, então, resolve procurar os seus pais. Chegando lá ele não só diz o que está se passando com Ishaan, como também faz seus pais refletirem quanto as implicações de se ter um filho. Indignado, o professor percebe que o seu pai está preocupado com seus próprios desejos; sua preocupação maior é se ele terá de “bancar” seu filho por toda a vida. Não importa se seu filho está infeliz!
            De volta ao colégio, Nikumb começa a instigar Ishaan a se interessar pelos estudos. Os progressos começam a surgir. O pai de Ishaan aparece um dia no colégio para conversar com o professor de artes que lhe fala sobre a importância de apoiar o filho, de encorajá-lo e lhe dar carinho. Ishaan passa a compreender as atividades e identificar-se com o professor que entende seu mundo.
            Quando o filme vai chegando ao fim: professores, alunos, pais e Ishaan reconhecem as limitações de cada um. Numa das cenas mais lindas do filme – num concurso de desenho, que Ishaan vence – a felicidade volta a aparecer na face daquele garoto. O reconhecimento, a sensibilidade, e a busca pelo conhecimento – pelas mais diversas vias – são algumas das lições que ficam em nossos pensamentos.



terça-feira, 31 de julho de 2012

A dona Perfeição


“Adoramos a perfeição,
porque não a podemos ter;
repugna-la-íamos, se a tivéssemos.
O perfeito é desumano,
porque o humano é imperfeito.”
 (Fernando Pessoa)

                Quando a Juliana nasceu, a primeira coisa que os médicos disseram foi: -“ Ela é perfeita!”. Nascera com quase quatro quilos, rosadinha, seu coraçãozinho batia forte, seus dedinhos pegavam o meu polegar com vontade! Era linda, linda, linda! Passara por todos os exames médicos. Ali estava minha pequena, minha filha tão esperada e amada antes mesmo de chegar ao mundo. Eu só tinha motivos para comemorar.
                Os anos iam passando e a Juju só me dava orgulho. Era disposta, brincava, dançava, pulava, correspondia a todas expectativas. Seu cabelinho chanel sedoso, bochechas avermelhadas, olhos brilhantes, demonstravam sua saúde rara. A vida era doce e alegre. Juju não se queixava de nada, nunca. Era uma criança felicíssima... E normal, como não poderia deixar de ser... Chorava, não queria comer verduras e legumes, caia de bicicleta. E era isso tudo que fazia ela ser a criança mais perfeita que eu já conheci.
                Foi na 1ª série que a professora de Juliana me procurou para perguntar o que estava acontecendo com a minha pequena. Eu fiquei muito surpresa! Minha linda sempre foi muito sapequinha! Será que ela aprontou alguma coisa na escola? O que será que aconteceu? Embora eu tivesse que trabalhar durante todo o dia, procurava me manter o mais próxima possível de todas as atividades da minha filha. A vida não é fácil! Chegando na escolinha a professora Bete diz: “– O  que está acontecendo com a Juju, mamãe? Ela anda tão aérea, parece estar no mundo da lua... Não está acompanhando a aula, fica sozinha no recreio...
              Na hora de dormir eu fui até a caminha da minha pequena pra conversar. O que está acontecendo, meu bem?  Fala com a mamãe. Ela caiu aos prantos e disse: “– Eu não sei, mamãe! Não consigo aprender nada, meus amiguinhos já não gostam mais de mim. Todo mundo acha que eu sou burra!
           Fiquei desesperada. O que fazer pra ver minha menina sorrir novamente? Como deveria agir naquele momento? Comecei a procurar os médicos. Fui ao psicólogo, neurologista, psicopedagogo... “– Fique tranquila! É uma fase passageira!”, “Ela ainda não se adaptou a escolinha”... “Talvez ela sinta falta do pai”. É, eu sei. Ser mãe solteira não é fácil. Mas o que eu poderia fazer? Cada dia que passava Juliana inventava uma desculpa para não ir à escola. Já estava sem ânimo para fazer qualquer atividade...
             Aquele ano foi muito difícil... Juliana repetira de ano e isso fazia com que ela se sentisse cada vez mais triste. Comecei novamente uma investigação. E dessa vez, não cessaria sem saber o que o meu tesouro mais precioso tinha. Depois de muitos exames, aquela menina que nascera com a marca de “ela é perfeita” tinha um “defeito de fabricação”. Minha lindinha poderia ter os melhores estímulos possíveis, e mesmo assim os médicos não poderiam garantir que ela acompanhasse as crianças da idade dela.
                “– Ela  tem dislexia”, a médica disse. Eu nem sabia do que se tratava. Doutora Virgínia me disse que dislexia é uma dificuldade de aprendizado da Linguagem: em leitura, soletração, escrita, cálculos matemáticos.... E que não tem nada a ver com falta de interesse, de motivação, de esforço ou de vontade. Confesso que essa notícia partiu o meu coração. Tudo o que eu mais queria na vida era ver a minha filha feliz, muito feliz. Como seria sua vida daqui em diante? Ela seria capaz de levar uma vida “normal”?
               Comecei a refletir sobre a “perfeição”. O que precisamos pra ser perfeitos? Ser perfeito é o ideal? Penso que a perfeição é sempre um sonho, e sonhos podem nos ajudar a construir a nossa vida e alcançar a felicidade. Mas pra ser feliz temos mesmo que ser perfeitos? O jeito é não perder a esperança! Mas como meu tesouro viveria sabendo que suas limitações poderiam (talvez) tornar seus sonhos inviáveis?     
               Os anos foram se passando e Juju se saia muito bem nas atividades desenvolvidas à ela. A escola e eu fizemos um acordo de cooperação nessa longa jornada – o que foi muito importante! Um belo dia eu pude concluir que minha filha é humana, e por isso, não poderia ser perfeita. E eu continuarei amando-a assim – cada vez mais – se é que isso é possível. Agora havia descoberto que a dislexia era uma maneira de ser e de aprender; era a forma que minha filha mostrava sua expressão singular, mostrava que era uma menina genial que também tinha muito para ensinar – além de aprender.
                Aprendi que a perfeição não é um padrão a ser seguido. Aprendi que nem todas mulheres gostam de rosa, como nem todos os homens gostam de azul. Aprendi que o bom da vida é viver cada momento desvendando sua mais pura cor. Aprendi que o caminhar é um dégradé maravilhoso. Que no início do dia o céu é cinza, mas pode ser azul. Que ao meio dia pode estar chovendo, mas podemos enxergar um lindo arco-íris no horizonte. Que no final do dia o céu vai ficando avermelhado nos mostrando a cor do sentimento mais nobre que existe: o amor.
***


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Mar Adentro


Ninguém é igual a ninguém. 
Todo o ser humano é um estranho ímpar.
     (Carlos Drummond de Andrade)    
  
         Mar Adentro
– logo na primeira cena – coloca o espectador no lugar do protagonista. Diante de uma janela voamos em busca de sonhos e desejos de liberdade. A imagem é a partir do olhar de Ramón Sampedro e pelo olhar do espectador – nos colocando no lugar dele e de seu observador. A todo momento estamos lidando com o dentro e o fora, a vida e a morte, os movimentos e a paralisia que vão nos envolvendo e nos sensibilizando, além de nos colocar em contato com a temática da eutanásia – assunto tão polêmico. Sampedro coloca em cheque a regulação da vida e da morte pelo Estado e pela Igreja e acusa a hipocrisia do Estado laico diante da moral religiosa.
       O polêmico debate com a igreja sobre a eutanásia aparece na figura de um padre, que é tetraplégico também. Numa visita a Sampedro a conversa deles é mediada por um seminarista – que com uma expressão confusa parece estar prestes a entrar numa crise existencial e religiosa. Num dado momento Ramón e o padre iniciam uma comunicação aos berros devido a impossibilidade de se encontrarem por conta da estreita escada existente na casa de Ramón. De um lado fala-se que a Igreja Católica não tem moral para falar de respeito à vida após a Inquisição, e do outro, fala-se sobre a importância de manter a vida.  
         Em meio a diversas discussões aparece a advogada Julia – oposição direta ao padre – que pretende cuidar do caso de Sampedro – portadora de uma doença degenerativa hereditária –, a advogada aparece como um canal entre Sampedro de agora e de antes do acidente. Em conjunto eles escrevem um livro, partilham sentimentos, afetos e desejos. Após anos e anos impossibilitado do contato físico Ramón encontra Rosa, “alguém que realmente o ama e o ajuda a morrer”. Ramón deixa um testamento concluindo o argumento da vida como obrigação, e aliando a ela um debate que sinaliza as tensões e as questões de poder que permeiam a vida e a morte: “negar la propiedad privada de nuestro propio ser es la más grande de las mentiras culturales. Para una cultura que sacraliza la propiedad privada de las cosas – entre ellas la tierra y el agua – es una aberración negar la propiedad más privada de todas, nuestra Patria y Reino personal. Nuestro cuerpo, vida y conciencia. Nuestro Universo".
       É óbvio que após assistirmos o filme Mar Adentro somos inclinados a pensar o que faríamos no lugar de Ramón Sampedro ou de seus familiares? Independente das diversas opiniões sobre a eutanásia, percebamos a importância de viver a vida com mais respeito ao ser humano.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

O Escafandro e a Borboleta - Le Scaphandre et le papillon


              

                Jean-Dominique Bauby  importante jornalista e escritor francês sofre um acidente Vascular Cerebral e entra em coma. Quando acorda é surpreendido pela notícia de que ele não pode mais se mobilizar –, não pode comer e nem respirar sem auxílio de aparelhos , conversar – só através de um olho! Embora o seu estado físico tenha sofrido demasiadamente com o acidente, seu intelecto encontra-se lúcido. Mesmo desejando a morte no início, Jean reage e toma a decisão de ESCREVER. Utilizando um sistema de comunicação original – com ajuda da fonoaudióloga – ele expressa sua experiência, seus sentimentos.
                Vivendo em seu escafandro ele interage com o mundo. E ao escrever o livro “O Escafandro e a Borboleta”, ele se liberta. Assim como a borboleta saindo de seu casulo. Com o corpo preso e a consciência liberta, ele vive o antes – sua vida sem a experiência do acidente  e o agora. Num misto de tristeza, aflição e grande emoção somos capazes de perceber o quanto falta para percebermos a nossa liberdade e capacidade. Mas às vezes eu me pergunto: Por quê devemos esperar os medos, as inseguranças e as dores nos mostrarem esses valores?

A princesa e os príncipes


“Esta história será feita de palavras que se agrupam em
frases e destas se evola um sentido secreto que
ultrapassa palavras e frases.”
(Clarice Lispector)

– Está tudo bem, minha linda! Agora descanse um pouquinho! A cirurgia foi um sucesso e a mamãe não sairá do seu lado! Marina – deitada num leito – olha pela janela e vê o azul do céu muito brilhante sorrindo. Não haviam mais aparelhos ou sondas como os fragmentos da sua memória mostravam. Não era sonho – dada a realidade –, mas poderia ser – dada a sensação. Era uma menina, uma linda menina. Havia acabado de passar por uma complicada cirurgia. Usava um vestido deslumbrante em tons degradês de um verde esperança que quando era tocado pelo vento assemelhava-se ao movimento das ondas do mar. Os seus olhos brilhavam e agradeciam o amor de sua família. Naquele momento ela pensava em como a dor foi capaz de lhe mostrar a importância do amor e da união daqueles que se amam. Quando eu crescer quero ser corajosa igual à mamãe. Sua voz – ainda rouca – chamou pelo pai e pelos dois irmãos. Queria ver todos os lábios ao seu redor sorrindo, todos vibrando por sua vitória. Dona Maria já não era capaz de distinguir se era noite ou dia, havia passado a semana toda dentro daquele hospital ao lado do seu tesouro mais precioso, sua filha. Mas dona Maria nunca se esquecera daquela frase cuja última palavra tem o seu nome, e depois da tempestade veio a calmaria, calma-maria.
Do outro lado da cidade, seu José e os dois filhos – Mário e Murilo – sobem no ônibus que levará os três até o hospital que Marina habitou por tanto tempo. Hoje é dia de alegria. – Papai! Estamos chegando? Estou com tanta saudade da Mari! O pai daquela família batalhadora fixa os olhos no movimento da gota de chuva que vai caindo no vidro e passa o percurso todo imaginando como estará sua esposa e sua filha. Faltam apenas três dias para Marina voltar para nossa casinha.
– Papai, papai! Fala comigo! Estamos chegando?.
– Fiquem quietinhos! Daqui a pouco chegaremos e vocês poderão ver a nossa princesinha. Mas, por favor, não façam bagunça no hospital. Lá é um lugar onde o silêncio deve reinar.
– Ué, como assim papai? Tem um rei no hospital? E a Mari virou princesa? O que se reina?
Só aquelas crianças eram capazes de fazer o seu José sorrir naquele momento. A ansiedade e a emoção eram nítidas em seus olhos que confundiam com o brilho da gota de chuva, a chuva que fechava o verão e caia sobre os olhos daquele pai.
– Ah, meu Deus! Não, meus filhos! Não tem rei nem reino. Quando o papai falou “reinar”, eu quis dizer que deve predominar o silêncio, que no hospital não pode fazer barulho, entenderam? Agora, quanto a Mari ser uma princesa isso ela é, pelo menos pro papai.
– Mas se a Mari é princesa, eu e o Mário somos príncipes?
– Eu quero ser príncipe, papai!
– Então os príncipes estão prontos pra descerem da carruagem e visitarem a princesa no castelo silencioso?
         Em coral, os meninos respondem sorrindo: – Sim, vossa majestade!
O pai e os filhos com passos rápidos chegam até a recepção do hospital, digo, do castelo. Seu José segura nas mãos dos meninos que permanecem quietinhos, mas trocando olhares cheios de ideias. Já tinham pensado até na coroa que seria feita com os jornais guardados no armário que ficava no quintal de casa. Então, seu José, o majestoso rei, chega ao quarto 310, respira fundo e abre a porta. Mário e Murilo correm pra cama de Marina.
– Mari, Mari! O papai falou que você agora é princesa e eu e o Mário somos príncipes.
O rei dá um beijo na testa da princesa de vestido verde e depois de algumas palavras carinhosas deixa a princesa conversar com os príncipes do castelo. – Só não esqueçam da ordem do rei: No castelo deve-se falar baixinho e nós só temos uma horinha com a princesa. Nada de bagunça!
Dona Maria e seu José sentam-se num sofá e observam as crianças. Ela chora tentando esconder as lágrimas, é um choro que alivia. Seu José lhe diz palavras bonitas e demonstra todo o orgulho que sente da esposa com um abraço muito apertado e com o seu ombro amigo que conforta e lhe dá forças pra seguirem em frente nesse momento novo de suas vidas. Em breve Marina chegará em casa e a estrela de cinco pontas que é aquela bela família brilhará ainda mais forte. Os minutos correm enquanto o casal conversa, se emociona e relembra os momentos mais difíceis do tratamento de Marina. – Meu bem, você se lembra como foi difícil conseguir vaga num bom hospital? E como era difícil conseguir alguém pra ficar com os meninos? – Amor, foi realmente uma fase difícil, mas agora vamos nos acalmar e procurar aprender com tudo o que passamos durante esse período. Veja os nossos meninos! São outras preciosidades que sentem sua falta e precisam de atenção também. Ontem mesmo Murilo veio me perguntar porque a mamãe não dormia mais em casa há dias, se ela tinha esquecido do seus pestinhas...
A enfermeira entra dizendo: – um grande poeta já disse: “o passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”. Os pais de Marina se entreolharam e com uma longa piscada de olhos mostraram a Angélica que tinham compreendido o que ela havia dito. – Meninos! Agora a Mari tem que dormir e ficar bem descansadinha... Se preparar para voltar pra casa.
– Moça, nós não somos meninos comuns. Somos príncipes e a Mari é princesa. Você sabia?
– Ah, é?! Eu não sabia. Mas então vamos deixar essa princesinha tirar um sono de beleza pra voltar pro castelo?
O momento da despedida se aproximava. Dona Maria não conseguia soltar as mãos de seu José. Seu coração sangrava, seus olhos enchiam de lágrimas, sua boca proferia palavras de agradecimento, amor e orgulho pela bela família. Os filhos estavam tão alegres por terem conseguido ver Marina. Murilo chegou a prometer que quando a princesa estivesse chegando de volta ao castelo haveria uma grande festa. Mário implorava por mais cinco minutinhos ao lado da irmã. A mãe mostrando a enorme felicidade por tê-los com ela, dizia que Murilo estava certo. A rainha olha para o rei, os príncipes e a princesa dizendo: – o príncipe Murilo tem toda razão. Daremos uma festa em nosso castelo assim que nossa princesa voltar. Peço aos meus príncipes que ajudem o rei a preparar o castelo nesses poucos dias que temos para o grande evento.
Nos dias que se seguiram dona Maria e Marina passaram no hospital aguardando a liberação dos médicos. Seu José acordava cedo pra fazer o café, chamava os meninos, os levava na escola e seguia para o trabalho. No longo caminho que tinha pela frente pensava na frase de Angélica. Um filme passava em sua cabeça. Aos 13 anos já trabalhava ajudando o seu pai. Só conseguiu frequentar a escola por quatro anos. Casou-se com 17 e foi pai aos 18. Anos depois já tinha seus três filhos lindos. Quando Marina fez 12 anos descobriram que ela estava muito doente e necessitava de grande atenção. Neste período o seu mundo caiu. Sua esposa era um anjo. O amor daquele casal foi capaz de resistir à fome, à dor e ao sofrimento. Agora era hora de recomeçar... Não viveria mais do passado, já havia aprendido muito com ele.
Sábado ensolarado. Céu azul e arco-íris lá longe. Bandeirinhas de papel colocadas no varal de dona Maria. Murilo e Mário traziam nas mãos vasinhos de flores. A kombi buzina. O coração dos três salta para a boca. As duas majestosas mulheres – a rainha e a princesa – descem e vão de encontro aos demais importantes membros daquele humilde castelo. A sensação de felicidade é indescritível.
– Mari! Pegue a sua coroa! Fizemos pra você, princesa!
– Vocês são ótimos irmãos, sabia?
– Ah, Mari! O papai disse que você nos deu uma grande lição. Ele falou que devemos ser sempre bondosos e pensar no próximo.
– Mário! O papai também disse que agora nós vamos começar uma nova fase, que não devemos viver com olhos no passado, mas nunca esquecer tudo aquilo que ele nos ensinou.
Os dias que vieram não foram dos mais fáceis. Afinal, o famoso “felizes para sempre” aparece apenas nos contos de fada. Dona Maria cuida do castelo, do rei, da princesa e dospríncipes. O seu José continua trabalhando muito para dar conforto às crianças. E essas, tornam-se a cada dia seres humanos mais sensíveis e admiráveis porque aprenderam que “as pessoas mais felizes não têm as melhores coisas, elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos” (LISPECTOR, 1993: 21).